Dekmantel 2018: entre potência e existência, voltamos às melodias elétricas
O segundo Rolêvo da música eletrônica.
Por Mateus Ribeirete, no Jornal RelevO de abril de 2018.
1.
Pelo segundo ano seguido, tive o privilégio de representar o Jornal RelevO na cobertura dos dois dias de Dekmantel Festival em São Paulo. Celebrei entusiasmado assim que obtive confirmação da credencial: o Dekmantel é um festival de música eletrônica que mistura o que você quer ouvir com o que você não sabia que queria ouvir com o Jardim do Éden.
Se ano passado estive na companhia de meia dúzia de amigos, neste ano éramos cerca de vinte almas ansiosas para chegar ao antigo Playcenter. Nossa expansão se deve ao boca a boca, pois aqueles que foram ao Jockey Club em 2017 se tornaram insuportáveis durante um ano inteiro. Minha parcela escrita de culpa despontou na edição de março de 2017 do RelevO, somada aos incontáveis elogios destinados ao evento desde então.
O Playcenter me traz boas lembranças. Estive lá no Planeta Terra 2009, antes de sua desativação (o pronome vale para ambos). Àquela época, queria ver Maxïmo Park, uma banda indie de Newcastle esquecível o suficiente para se imortalizar no coração do garoto de 17 anos que, acompanhado por um corte de cabelo merecedor do mais sincero ódio — e pelo amigo Daniel Babalin –, chegava ao tradicional parque de diversões.
De lá para cá, muitas coisas mudaram. A começar pelo cabelo. Também obtive um diploma estúpido e com ou sem ele trabalhei em sala de aula, em escritório e em casa. Viajei algumas vezes. Entrei no RelevO e ainda não me removi. Não zerei nenhum GTA. Nem por um segundo acreditei em horóscopo. Conheci um padre vietnamita. Um enredo de poucos destaques, enfim. Certamente fiquei mais amargo ou conservador, porém ou portanto mais fleumático. Minha melhor amiga daquela época morreu. Fausto Fanti também morreu, sem falar no Bowie. O Totti se aposentou, infortúnio que, se você perguntar para a pessoa errada, atinge mais do que uma morte.
De todo modo, cheguei novamente àquele parque de diversões abandonado — como, aliás, qualquer um deve parecer em relação à versão de 17 anos de si mesmo. Eu era o pássaro abatido, sombra no falso azul refletido nos meus óculos, horas depois de desembarcar em São Paulo e almoçar frango à parmegiana. E podia ouvir o set do brasileiro Davis no palco principal.
2.
Quatro palcos variavam do orgânico arborizado à pancadaria fechada. É provável que todos tenham crescido em área se comparados aos do Jockey, mas o Ufo, o mais pesado deles, proporcionalmente cresceu mais que o resto. Se no ano passado era um corredor estreito, dessa vez dispunha de uma tenda ampla, cujo tamanho exato minha cognição limitada impede de estimar.
Como no ano passado, comprava-se tudo com o cartão do evento, o qual podia ser recarregado pelo celular, no cartão de crédito, ou então pagando a um dos vários indivíduos que se espalhavam pelo Playcenter.
A água custava 7; a Stella Artois, 12; a Hoegaarden, servida com laranja, 18. Ambas as cervejas vinham em copos próprios que você podia levar para casa e guardar como souvenir. (A não ser que você, como eu, seja amigo de Lucas Leite, que viria a perder oito desses belos copos em dez minutos). Não lembro do custo dos destilados. Havia um espaço de alimentação que malemal cheguei a conferir, além de uma cabine com vestimentas e acessórios licenciados.
Não faltavam banheiros — em cujas cabines, pelo segundo ano seguido, resistia o álcool em gel. Convido alguém a conferir a informação, mas presumo que isso constitua um recorde na história de festivais. Também havia algumas pias com água e sabonete líquido próximo a um estande com cosméticos e espelhos à disposição do público.
Falando em público: como se um deus de acessórios tivesse estalado os dedos, todos os óculos continham cordinhas ou correntes adornadas. O combo boné-bigode-pochete também se punha em alta entre os jovens, principalmente os que se arrumam para parecer desarrumados. Muitas camisas floridas.
Notava-se aqui e ali a presença de figuras cybergóticas, com ornamentos que caberiam em ilustrações de Neuromancer ou na lista de aprovados da Berghain. Nunca os tinha visto à luz do dia. Também vi alguém com a camisa do Sampaio Corrêa. No sábado, por sinal, usei a mesma camiseta que havia utilizado no Planeta Terra 2009, espécie de piada de um homem só que duplicou seu público-alvo quando mostrei uma foto daquela ocasião ao Babalin, minha única testemunha nos dois eventos.
Em todo o caso, após rodar entre os palcos para conhecê-los, comprar cerveja e encontrar os amigos desencontrados, me situei no principal para acompanhar a sul-coreana Peggy Gou. O Dekmantel havia finalmente começado para mim. Enquanto isso, pelo Campeonato Italiano, a Roma derrotava o Napoli em Nápoles.
3.
Jovem, estilista em Londres e radicada em Berlim, sobra grife a Peggy Gou. E apesar de grife não ganhar jogo, a sul-coreana deixou ótima impressão. Embalada pelo lançamento recente – no dia anterior – de um EP digno, ela enfrentou a aproximação do crepúsculo cinzento com um house cósmico que conseguiu acalentar o público, subindo o sarrafo para um fim de tarde agradável.
Midland, seu sucessor, partiu em boas condições. Atrás dele, os sujeitos que atendem por Four Tet e Floating Points, ambos escalados para o dia seguinte, observavam. E nem por um minuto o inglês fraquejou, pois seu set cresceu feito a economia da Botswana, e com ele a atmosfera do palco principal. No fim, a intensidade contrastava com o personagem que a propagava: sua fachada alheia a qualquer firula, guarnecida por uma cabeça resignada à calvície precoce, confere-lhe um aspecto de “everyman” com o qual é difícil não simpatizar. O recém-lançado Between the Beats que o acompanha é excelente, e acho que minha namorada está apaixonada por ele.
Quando Midland parou, enfim, eu estava pilhadaço – dez minutos de Mano Le Tough confirmaram minhas suspeitas de que eu não queria ver Mano Le Tough. Assim me movi para o Randomer (a princípio, porque há uma ranhura nessa cronologia). Gostaria de oferecer detalhes sobre o Randomer, mas a verdade é que esse foi o período em que a cabeça menos funcionou. Minhas únicas certezas correspondem a (1) ter me divertido e (2) ter presenciado a passagem de bastão no palco UFO, pois DJ Stingray chegava para proporcionar o espetáculo final da noite.
Corpulento, negro, trajando uma camisa de Detroit – isto é, literalmente uma camisa abotoada cinza em cujo centro se lia “Detroit” –, o que aquela autoridade de balaclava fez foi devastador. Ele arregaçou, e arregaçou com a consciência de um personagem do Antigo Testamento. Sobravam expressões espantadas: assustava a técnica, mas assustava principalmente a naturalidade, a facilidade com que essa técnica nos era fornecida. Como as arrancadas do Ronaldo em 97.
Vinham lembranças honrosas de Jeff Mills, que encerrou o primeiro dia no ano passado. DJ Stingray foi o aleph, esse ponto no espaço que contém todos os outros pontos. E se Borges realmente imaginava que “o paraíso é uma espécie de biblioteca” – uma frase bastante arrombada –, é porque ele nunca foi ao Dekmantel. A não ser que essa biblioteca tenha o DJ Stingray debulhando neurônios com uma coleção de discos e dois canais de som. É tudo de que ele precisa, mas, principalmente, é tudo de que nós precisamos. Infelizmente, também precisávamos ir para casa.
4.
Poderíamos ter seguido para o Sambódromo do Anhembi, onde a festa continuava, porém a cautela falou mais alto. Diante do dia apressado, houve decisão unânime de poupar os titulares para a grande decisão do domingo. Assim sendo, nos restou dormir com mais tranquilidade e acordar sob um menor impacto da destruição. Feito isso, almoçamos e logo nos aprontamos.
O trânsito se arrastava. Talvez por conta de Santos x Corinthians, que se enfrentavam no não tão distante Pacaembu, talvez por estarmos em São Paulo. De qualquer forma, levamos quase uma hora para concluir um percurso que no sábado havia contabilizado pouco mais de vinte minutos. Eram quase 17h e meu grupo fracionado de amigos foi direto para Elena Colombi & Interstellar Funk, que fizeram um excelente trabalho pisando no acelerador sem perder de vista o horizonte. Formaram uma ótima dupla, e ali permanecemos até seu fim.
Nos movemos para conferir o já iniciado Mall Grab, australiano que parece retirado de um VHS de skate dos anos 80. Jovem e frenético, encaixa com a festa na piscina do filme com universitários americanos. Mas de forma genuína: o rapaz simplesmente detém os atalhos para a animação, e assim você é carregado sem esforço em direção ao divertimento puro. Na prática, um mérito reservado a poucos. Depois dele foi a vez de um bem mais introvertido Four Tet, a quem eu reservava a maior das expectativas.
Logo depois de ter entrado, problemas técnicos congelaram o som por quase dez minutos. Vencido o sufoco, Kieran Hebden, um músico brilhante na mistura entre o orgânico e o sintético, não poupou faixas de seu excelente último disco (em versões com esteroides). Também soltou ‘Bad Liar’, da Selena Gomez – não ironicamente, tampouco como se aquilo fosse uma bomba –, e por algum tempo só se falou sobre isso. Four Tet, enfim, foi um momento realmente mágico compartilhado por todas as pessoas cuja presença eu desejava. Mágico o suficiente para não abrir mão do adjetivo mágico, por si só mais brega que um museu de cera.
Aí veio o alemão Marcel Dettmann, loiro de traços precisos e cabelo notavelmente saudável; um arquétipo de galã de alguma região mais rica que a sua. Gélido, poderia ser ao mesmo tempo protagonista de Suits e piloto de Fórmula 1. Eu nunca assisti Suits, nem uma corrida de Fórmula 1. Meus amigos que o viram no Rio de Janeiro – uma festa há poucos meses, também do Dekmantel – lamentaram algumas repetições no set. Apesar de entusiasta de sons quadrados, não digeri muito bem o bloco monotonal daqueles 90 minutos, o que talvez seja muito curto, e também muito cedo (20h) para o deutschmann. Eis a mulher.
A russa Nina Kraviz, como toda pessoa com níveis parelhos de muito sucesso e muita beleza, atrai polarizações entre os que a tratam como deusa e os que a subestimam apenas porque outros a tratam como deusa. Suponho que ela não se importe muito. Seu set no Dekmantel 2017 não havia me cativado, mas ali permaneci confiante. Uma aposta segura e certeira: é verdade que se ouvia a agulha, e é mais verdade que seu repertório é extraordinário. Entre a acidez e a pancadaria e a pancadaria ácida, Kraviz encerrou o festival em alta, naturalmente agradando a produção, que pela primeira vez anunciava os DJs da festa de encerramento.
Sem muita escolha, logo deixamos o Playcenter e nos dirigimos ao Sambódromo do Anhembi, onde a própria Nina Kraviz, Marcel Dettmann e Kobosil se alternavam na destruição do palco principal, ao passo que Four Tet e Floating Points ofereciam uma alternativa mais suave. Ambos em altíssimo nível, ressuscitando mortos feito Lázaro após o sepultamento. Havia distribuição de energético. A montagem do Sambódromo, por sinal, formou uma surpresa positiva.
Naquele cenário escuro, as luzes esparsas compunham um ambiente não só confortável para se estar, mas também agradável de se observar. A pista principal se alojava embaixo da arquibancada; a segunda, em um dos cantos. Para chegar até elas, atravessava-se o grande sambódromo em si, sensação marcante para um curitibano desacostumado àquela estrutura. Amortecido, aguentei apenas até as três da manhã – os fortes foram até as sete.
Na volta para Curitiba, um sentimento agridoce acompanhava minhas lembranças de quando deixei o Playcenter, isto é, em 2009 e em 2018. Lá estava eu, um carrossel de células ligadas a outras células ligadas dentro de outras células, passando pelo mesmo parque de diversões quase dez anos depois. Voltar do Dekmantel continua uma tarefa dolorosa, muito embora querer reviver algo é, afinal, a marca pela qual se batalha. Em algum momento esses dez anos serão vistos como um mesmo período, pois aquelas células estavam entretidas e bem acompanhadas; seu fogo ainda não empalidecera. Assim sempre foi e assim sempre será: mais importante do que os traços mutáveis são aqueles que, ingênuos, resistem às artimanhas do tempo.