EDITORIAL
Bom dia,
Esta é a edição #108 da Enclave, a newsletter com banco de couro.
Em nossa última edição (#107) há um século, escrevemos sobre o peculiar Shibumi, do peculiar Trevanian, adicionando a epifania peculiar de Anthony Bourdain: leia aqui.
Nesse meio tempo, o editor entrou em férias, viajou e voltou trabalhando como nunca. O Jornal RelevO já chegou à edição de junho (preparada, impressa e enviada), ao passo que a de maio está disponível no nosso site. Quem sabe agora a newsletter retorna a seu ritmo normal, isto é, sabe-se lá qual.
Nesse meio tempo, também, Vangelis (1943-2022) morreu. A notícia pode ser velha, o que definitivamente não nos importa. A morte é o que resta, e trataremos dela – mais uma vez – na edição de hoje.
Leia também: Igualmente humanos – adeus a Tony Allen, Aldir Blanc e Florian Schneider; Jessica Walter; Syd Mead, futurista visual.
Por fim, lembramos que todas as edições do RelevO já habitam nosso site, bem como todos os textos de todos os nossos ombudsman. Como sempre, o arquivo da Enclave pode ser fuçado, esmiuçado e escrutinado a qualquer momento neste link.
HIPERTEXTO
Lágrimas na chuva
Faz quase um mês que Vangelis nos deixou. Nossa pequena homenagem – e um guia bem limitado com cinco indicações de álbuns.
Vangelis Papathanassiou morreu aos 79 anos, vítima de insuficiência cardíaca (movida, aparentemente, por Covid-19; "aparentemente" porque, até o momento, nada foi esclarecido por completo).
Sua popularidade mais estrondosa pode ter vindo com Carruagens de Fogo (1981), aquela melodia incrustada de tal forma na cultura popular que não se desassocia mais das próprias paródias, mas o catálogo de Vangelis oferece diversas outras camadas.
A começar pelo que fez antes mesmos de suas incursões pelas grandes trilhas sonoras. Já escrevemos sobre 666 (1973), o sensacional disco da Aphrodite's Child, banda grega que reuniu Vangelis e o popularíssimo Demis Roussos. Ali, o grupo tocou o terror com um rock esotérico viril incapaz de envelhecer.
Porém, Vangelis jamais ficou conhecido por qualquer "rock viril". Ao contrário: sua imagem ficou bem mais ligada ao new age, à calmaria constante. Essa versatilidade – a caixa de ferramentas inesgotável, do rock progressivo ao acompanhamento de meditação – o preparou para produções tão reconhecidamente cósmicas a partir de seus sintetizadores.
E cosmicidade é o que não falta na trilha sonora de Blade Runner (1982), um álbum extraordinário por si só – e componente indissociável do filme, outra obra-prima. Sem Vangelis, Blade Runner não é Blade Runner. Nessa obra, o grego "f*d* o tecido do tempo" engendrando uma nova estética de futuro.
Discorrer sobre Blade Runner é chover (ou chorar) no molhado, portanto apenas acrescentamos que a trilha sonora foi complementada em 2007, com dois discos adicionais (o lançamento original tem apenas 57 minutos, expressivamente menos que o composto para o filme).
Volta e meia essas faixas bônus aparecem no YouTube, mas nem sempre de maneira organizada. Por algum motivo, a edição é rara na internet. Por ora – enquanto não derrubam –, encontramos algo próximo a isso (2009, lançamento privado) aqui.
Há diversos bootlegs com lançamentos não oficiais. O mais interessante para iluminar cantos esquecidos do filme é a Esper Edition.
De todo modo, Vangelis não só usa, mas também gasta, estende, expande seus sintetizadores. O resultado é um pináculo, um dos melhores discos de música eletrônica de todos os tempos. A verve da cidade futurista hiperpopulosa está ali; o quarto escuro e solitário também – a belíssima 'Memories of Green' já havia sido lançada em See You Later (1980).
See You Later, por sinal, talvez seja a melhor maneira de encapsular Vangelis em 40 minutos. O disco – um tanto esquecido – é experimental, porém melódico; eletrônico, porém orgânico. 'Multi-track suggestion' demonstra essa abordagem emergente entre o pós-punk e o disco. Colaboram Jon Anderson (do Yes), Peter Marsh e Cherry Vanilla.
Por sua vez, The Friends of Mr. Cairo (1981), agora também assinado com Jon ("Jon & Vangelis"), é divertido pela megalomania oitentista. Já havíamos comentado, no texto sobre 666, como a música-título "contém uma riqueza intertextual tão grande que será tema de alguma Enclave futura".
Pois bem, a longa faixa (12 minutos) navega pelo livro/filme Maltese Falcon/Relíquia Macabra, como um pastiche do cinema americano dos anos 1940, incluindo imitações de Humphrey Bogart e Jimmy Stewart.
Aqui, o clipe. Aqui, a versão completa. Mr. Cairo é, naturalmente, personagem do livro de Dashiell Hammett, interpretado no filme pelo marcante Peter Lorre.
O álbum ainda contém 'State of independence', que viria a estourar no ano seguinte, com Donna Summer (produzida por Quincy Jones).
Na outra ponta, temos a trilha sonora L'Apocalypse des animaux (1973), de quando ele ainda estava na Aphrodite's Child. Gravado em 1970, esse curto disco – que acompanhava uma série documental francesa e não contempla tudo que Vangelis compôs para a produção – tem como fio condutor a leveza sublime. Basta ouvir 'Le singe bleu' para flutuar nessa sutileza.
Mencionamos cosmicidade: não à toa, Carl Sagan utilizaria 'Création du monde' justamente na sua série Cosmos (1980), anos depois.
Se existe um além, Vangelis não fará uma estreia, mas um reconhecimento. Se existe um ser maior, este ser lhe perguntará: "como cara***s você já expressava tudo isso aqui com um teclado?". Que nosso grego favorito descanse em paz.
Nossos cinco favoritos:
666 (1973) – pelo Aphrodite's Child [Spotify]
L'Apocalypse des animaux (1973) [Spotify]
See You Later (1980) [Spotify]
The Friends of Mr Cairo (1981) – com Jon Anderson [Spotify]
Blade Runner (1982) [Spotify]
Bônus: China (1979) [Spotify]
BAÚ
Trevanian
Nikolai tocou com os dedos o supercílio quebrado. — Não foram os seus guardas, senhor. A maioria dos ferimentos é o resultado do interrogatório ao qual me submeteram os americanos.
— A maioria deles? E os outros?
Nikolai abaixou os olhos na direção do chão e pigarreou. Sua voz estava áspera e fraca e naquele momento precisava ser fluente e persuasivo. Prometeu a si mesmo que não permitiria, nunca mais, que a sua voz fraquejasse por falta de exercícios. — Sim, a maioria. O resto... Devo confessar-lhe que cometi algumas auto-agressões. Desesperado, bati com a cabeça de encontro à parede. Foi uma atitude tola e vergonhosa, mas sem nada para me ocupar a mente... — deixou que a voz definhasse e manteve os olhos baixos.
O Sr. Hirata estava perturbado só de pensar nas repercussões de um caso de loucura e suicídio quando já estava no final de sua carreira, especialmente agora que só lhe faltavam alguns anos para a aposentadoria. Prometeu fazer o que estivesse ao seu alcance e saiu da cela tumultuado e agitado diante do pior tormento para um funcionário público civil: a necessidade de tomar uma decisão por sua conta.
Trevanian, Shibumi, 1979 (ed. Círculo do Livro, 1984).