Retornamos com Goya, fraude intelectual e morte durante maratona
Enclave #38: pinturas negras, Alan Sokal, Francisco Lázaro.
EDITORIAL
BOM DIA, leitor da Enclave — a newsletter em exercício.
O Jornal RelevO de setembro voa neste link! As páginas centrais de agosto, cuja ilustração quebrou a gráfica, podem ser conferidas aqui. Nesse meio tempo, nossa diagramadora Marceli Mengarda foi publicada no Livro dos Novos III (Travessa dos Editores) – quanta versatilidade!
Se você aprecia a Enclave, por favor, recomende a outros seres humanos. Nosso histórico está sempre aberto.
HIPERTEXTOS
Goya: Pinturas negras
Algumas das obras mais icônicas de Francisco Goya constam entre as Pinturas negras. É muito provável que você já tenha se deparado com "Saturno devorando um filho", "Dois velhos comendo sopa" e "A romaria de Santo Isidoro", por exemplo. As temáticas sombrias, aliadas a cores soturnas, um tanto ocres, hoje são vistas como epítome visual de morte – entre outras representações. O interessante é que você, e eu, e nós todos, poderíamos nunca ter visto qualquer um dos quatorze extraordinários trabalhos: Goya não fez a mínima questão de disponibilizá-los.
Francisco Goya, pois, desenvolveu as Pinturas negras já idoso, surdo e recluso. Em 1819, aos 72 anos, vivendo em uma casa nos entornos de Madri, o espanhol passou a desenvolver essas peças, provavelmente após o susto de uma doença séria (o qual, por sua vez, inspirou este autorretrato). A residência de dois andares, conhecida como Vila do Surdo – coincidentemente, não por conta dele, mas graças a um dono anterior –, abrigou todas as composições. Porque elas foram criadas diretamente nas paredes. Uma hipótese sobre a disposição dessas foi assim elaborada na imagem abaixo. (Projeção em 3D, aqui.)
Nenhuma das pinturas, aliás, recebeu título: os nomes foram dados mais de 50 anos depois da morte do artista e, portanto, não são oficiais. Em 1823, Goya deixou o lar (e, consequentemente as obras) para seu neto Mariano, mudando-se para Bordéus – Bordô –, na França. Até o fim de sua vida, o público não teve qualquer conhecimento delas, e o Museu do Prado, de Madri, só as conseguiu em 1881, isto é, mais de meio século depois da morte de Francisco Goya (1828). O processo de transferência havia começado na década de 1870.
Se boa parte dos gênios adquire reconhecimento após o óbito, o caso das Pinturas negras se torna intrigante porque, afinal, elas só foram vistas décadas depois. Como genialidade pouca é bobagem, Los desastres de la guerra, outra grande série de Goya, passou pelo mesmo processo de composição privada, sendo divulgada 35 anos depois do falecimento do pintor.
Fraude intelectual
“Transgredindo as fronteiras: em direção a uma hermenêutica transformativa da gravitação quântica”, de Alan Sokal (1996), é um dos artigos científicos mais importantes já publicados. Nele, o físico americano questiona a gravitação quântica, propondo uma interpretação desta como mera construção social e linguística. O periódico acadêmico de estudos culturais Social Text (Universidade de Duke-EUA), assumidamente pós-moderno, logo o acolheu. No texto, Sokal subverte a realidade externa e as leis da natureza a um construto, fruto do "dogma imposto pelo hegemonia do pós-Iluminismo sobre o panorama intelectual ocidental".
O artigo inteiro, no entanto, não passa de uma imensa ladainha. Alan Sokal queria provar que, uma vez alinhado ideologicamente com o corpo editorial, qualquer baboseira passaria. A ponto de o autor recorrer a afirmações completamente desprovidas de sentido, por sua vez pautadas em teóricos nada relacionados. Nas palavras dele,
Ao longo do artigo, utilizo conceitos científicos e matemáticos de tal modo que poucos cientistas ou matemáticos os podem levar a sério. Por exemplo, sugiro que o "campo morfogenético" – uma ideia bizarra da New Age devida a Rupert Sheldrake – constitui uma teoria de ponta da gravidade quântica. Isto é pura invenção; nem mesmo Sheldrake faz tal afirmação. Afirmo que as especulações psicoanalíticas de Lacan foram confirmadas por trabalhos recentes na teoria do campo quântica. Mesmo leitores não cientistas podem perguntar-se que raio tem a teoria quântica a ver com a psicanálise; no meu artigo não dou nenhum argumento para apoiar tal relação. Em suma, escrevi intencionalmente o artigo de tal modo que um físico ou matemático competente (ou mesmo alguém com conhecimento razoável) percebesse que era uma fraude. Evidentemente, os editores de Social Text publicaram calmamente um artigo sobre física quântica sem se preocuparem em consultar alguém com conhecimentos nessa matéria.
A fraude acabou revelada – por ele mesmo – em outra publicação subsequente. Segundo Sokal, politicamente alinhado à "velha esquerda", a "nova esquerda" teria criado uma "subcultura acadêmica auto-perpetuada que tipicamente ignora (ou desdenha de) críticas externas fundamentadas" – daí sua motivação em desmascará-la. A algum lugar, parece que ele chegou.
Francisco Lázaro: “ganho ou morro”
“Ganho ou morro”. Reza a lenda que o maratonista português Francisco Lázaro proferiu essa frase logo antes de correr nos Jogos Olímpicos de Estocolmo, em 1912. Verídica ou não, a sentença se confirmou, ainda que Lázaro não tenha se consagrado vencedor da prova.
Francisco Lázaro, natural de Lisboa, havia ganhado maratonas seguidamente em Portugal e, portanto, chegou confiante à ensolarada Estocolmo. Carpinteiro, corria na sua cidade após o trabalho, desprovido de qualquer treinador. Na Olimpíada, foi porta-bandeira na delegação de seis lusitanos. Não completou a derradeira prova de 14 de julho pois, no meio do caminho, morreu — o primeiro atleta a fazê-lo durante uma prova olímpica.
O português era esperado por seus colegas no 35.º quilômetro, mas não apareceu. Em percurso inverso, foi encontrado no 30.º, e logo levado ao hospital. Ele sucumbiu na madrugada, após diagnóstico de meningite. A narrativa de sua morte, entretanto, é discutida até hoje: já atribuíram sua queda a uma insolação, desidratação, ou ao corredor ter coberto o corpo de sebo para se proteger do Sol. Uma hipótese mais recente credita a tragédia à mistura fatal de substâncias que deveriam complementar-lhe o treino.
Sobre o assunto, recomendados este ótimo – e recente – texto.
[Obrigado, Nuno Almeida!]
Wikiverse
Se a Wikipédia fosse uma galáxia, e se você pudesse navegar nessa galáxia – em 2D e 3D –, é o resultado conferido em Wikiverse. Utilize o mouse e comandos do teclado para se locomover: os artigos da enciclopédia equivalem a estrelas, e a proximidade entre elas corresponde à semelhança entre os tópicos. Os links formam agrupamentos por tema. Se você gosta de se perder no buraco negro da Wikipédia, essa é uma maneira ainda mais vistosa.
LISTA: Vimos durante a ausência
Versão aquarela de Blade Runner;
Mapa do mundo por religiões;
Roda Viva com Ted Nelson (2007), inventor do termo hipertexto (e frustrado com a internet);
Linhas do tempo: mapa de contemporâneos; [Obrigado, Bolívar!]
Imagens reais que parecem Blade Runner;
Prefeita Teresa, que a essa altura já deve ter passado por toda a cadeia alimentar do meme;
Biblioteca de Babel, de Borges, reproduzida na internet (se você não entender como se usa, explicaremos em algum hipertexto); [Obrigado, Kutianski!]
32 belas imagens colorizadas da Segunda Guerra Mundial;
Maços de cigarro de cem anos atrás com dicas úteis para a vida; [Obrigado, Marceli!]
Typeset in the Future, blog que analisa num nível absurdo a tipografia de 2001: Uma Odisseia no Espaço (de e outros, inclusive... Blade Runner); [Obrigado de novo, Marceli!]
Video e Game Club; [Marceli, chega.]
BAÚ
Era, por contraste, o outro lado da natureza de Haydon que ele, como colega, achara mais fácil respeitar: a capacidade, que ardia em fogo brando, de ser um administrador natural de agentes; seu raro senso de equilíbrio; a habilidade para lidar com agentes duplos; a montagem de operações fraudulentas; a arte de estimular afeições e até amor, embora isso contrariasse um grande número de outras lealdades suas. (...) Embora seus admiradores, Bland Prideaux, Alleline, Esterhase e todo o resto de seu fã-clube pudessem nele ver o homem completo, a verdadeira habilidade de Bill consistia em usá-los, viver através deles para se completar: um pedaço aqui, outro ali, de suas identidades passivas, assim dissimulando o fato de que ele era menos, muito menos que a soma de suas qualidades aparentes... e, finalmente, ocultar essa dependência sob a arrogância de um artista, chamando-s de criaturas de sua mente.
John le Carré, O espião que sabia demais [p. 180, ed. Record].