EDITORIAL
Bom dia,
Esta é a edição #72 da Enclave, a newsletter impedida pelo VAR.
Semana retrasada, a edição #71 relembrou Andy Gill e seu influente Gang of Four: leia aqui.
A edição de outubro do Jornal RelevO foi enviada há três semanas. Esperamos que, pouco a pouco, as entregas sejam normalizadas.
A edição de setembro do RelevO está disponível no site.
HIPERTEXTO
Syd Mead, o futurista visual
Quando o ilustrador Syd Mead morreu, em 30 de dezembro do ano passado, a Enclave estava parada. Do contrário, não teríamos deixado passar.
Mead é, direta ou indiretamente, um dos grandes arquitetos do imaginário popular do século passado. Sua influência reverbera interminavelmente, e muito do que vemos na ficção científica – por si só fonte contínua de inspiração para arquitetura, design e moda – partiu desse artista.
Americano, serviu ao exército logo após a Guerra da Coreia. Depois de retornar, graduou-se na Art Center School em Los Angeles (1959), então ingressou na Ford, onde permaneceu por dois anos. Passou as décadas seguintes prestando serviços de ilustração, design e renderização para diversas empresas do mundo inteiro.
Sua consagração no imaginário popular veio com Blade Runner e Tron, ambos lançados em 1982. Tratamos da construção do universo do primeiro na Enclave 58.
Já respeitado como designer industrial, Mead foi chamado pelos respectivos diretores (Ridley Scott e Steven Lisberger) para auxiliar com objetos (incluindo veículos) e cenários das duas narrativas futuristas. Ele já havia trabalhado em Star Trek: The Motion Picture (1979).
Como os filmes foram lançados praticamente ao mesmo tempo – 25 de junho (BR) e 9 de julho (Tron) – não sabemos em qual produção Mead trabalhou primeiro, ou se houve alguma influência direta entre um serviço e outro. Os spinners (carros voadores) de Blade Runner e as motocicletas futuristas de Tron são fruto da imaginação e dos traços do ilustrador.
Mas esses são apenas exemplos pinçados. Basta bater o olho em alguma de suas obras (recomendamos este link) para compreender a grande beleza de seus cenários, sempre envolventes em cores e detalhes. Em uma tela nítida, identificamos todo um universo vivo – e quem se inspirou nele.
Mead ainda trabalharia em diversos títulos, como Aliens, Strange Days, 2010, Elysium e Blade Runner 2049. Sua ligação com o cinema foi compilada no belíssimo livro The movie art of Syd Mead (2017), com prefácio de Denis Villeneuve.
O artista morreu aos 86 anos, em razão de um linfoma. Ele deixou um marido, Roger Servick, com quem havia se casado em 2016. Guardamos seu legado com muito carinho.
BAÚ
Satã, por John Milton
É esta a região, o solo, o clima,
Disse o arcanjo perdido, o assento
A trocar pelo Céu, as trevas tristes
Pela celeste luz? Seja, já que ele
Que agora é soberano usa e manda
O que entende; à parte está melhor
Quem lhe igualou razão, força fez súpera
Acima dos seus pares. Adeus campos
Que o gozo sempre habita, ave horrores,
Mundo Infernal, e tu profundo Inferno
Recebe o novo dono, o que traz
Mente por tempo ou espaço não trocável.
A mente é em si mesma o seu lugar,
Faz do inferno Céu, faz do Céu inferno.
Que importa onde se eu mesmo o for,
Ou o que seja, logo que não seja
Inferior ao que deu fama ao trovão?
Aqui seremos livres; o magnânimo
Não alçou cá a inveja, nem daqui
Nos levará. A salvo reinaremos,
Que é digna ambição mesmo se no inferno:
Melhor reinar no inferno que no Céu
Servir. Mas por que deixarmos amigos,
Os sócios e parceiros da falência,
No lago do letargo aturdidos,
E não os chamar a dividir parte
Nesta infeliz mansão; ou uma vez
Sãos os braços malsãos, tentar ainda
O Céu reaver, ou mais perder no inferno?
John Milton (Paraíso Perdido, 1674, Livro 1; trad. Daniel Jonas, Editora 34, 2016).
AMARCORD
Saenredam
Publicado originalmente na edição #20, em setembro de 2015
Peter Jansz. Saenredam – esse ponto no meio do nome não está errado –, foi um artista competentíssimo. Suas pinturas, via de regra interiores de igrejas, sobrevivem com fôlego desde o século 17, em boa parte graças à incrível perspectiva que o holandês conseguia ilustrar. Contribuem para a beleza de suas obras a redução das figuras humanas, meros figurantes de estruturas colossais, e a própria nudez de algumas igrejas já reorganizadas pelo protestantismo.
Filho de artista – as obras bíblicas de seu pai em nada se assemelham às de Pieter –, Saenredam vingou em Haarlem, onde estudou e desenvolveu sua aptidão arquitetônica na aquarela. (Em Assendelft, cidade natal, ele até pintou uma igreja com o túmulo do pai). Em seus quadros, nota-se uma exposição do espaço tão peculiar quanto encantadora: é possível se ver sentado ali, outro coadjuvante vivendo discretamente.
Dessa forma, torna-se um interessante exercício de comparação colocá-lo ao lado do conterrâneo Emanuel de Witte, cujas pinturas de interiores, também belíssimas, expressam (na luz, nas cores, nas pessoas) uma força totalmente diferente daquela demonstrada por Peter Jansz. Saenredam.
Para mais obras de Saenredam, clique aqui, ou aqui, ou aqui.