EDITORIAL
Bom dia,
Esta é a edição #73 da Enclave, a newsletter vacinada.
Semana retrasada, a edição #72 relembrou o futurista (sentido amplo) Syd Mead: leia aqui.
A edição de novembro do Jornal RelevO foi impressa ontem e será enviada ainda esta semana. Os envios, por sinal, parecem ter se regularizado. Agora são apenas lentos, mas não estrondosamente lentos.
A edição de outubro do RelevO está disponível no site.
Semana que vem, em razão do feriado (02/11), não rodaremos, então aproveitem uma caixa de entrada mais limpa.
HIPERTEXTO
Brasília, poema sinfônico
Ainda encantado com a música brasileira, deparei com um evento até então desconhecido para meu limitado repertório. Diante de minha surpresa, consultei alguns amigos para averiguar se fui o último no planeta a conhecer Brasília: Sinfonia da Alvorada (1959). Concluí que a descoberta, mesmo longe de obscura, é suficientemente esquecida para justificar meu espanto.
A obra, pois, consiste em um poema sinfônico escrito por Vinicius de Moraes e composto por Tom Jobim. A criação foi incentivada (mas, tecnicamente, não encomendada) por Juscelino Kubitschek – em razão da inauguração de Brasília (DF), em 1960. Ela é dividida em cinco movimentos: I. O planalto deserto; II. O homem; III. A chegada dos candangos; IV. O trabalho e a construção; V. Coral.
O LP, gravado em 1960 e lançado em 1961, teve encarte de Oscar Niemeyer, que já havia trabalhado no cenário da peça Orfeu da Conceição, de Vinicius (a mesma que virou filme, teve trilha sonora de Jobim e cujo longa-metragem inspirou Bong Joon-ho). Na gravação, a voz que declama é do próprio Vinicius.
Curiosamente, a sinfonia só foi apresentada ao público em 1966, na TV Excelsior. Em Brasília, isso aconteceu apenas em 1986 – seis anos após a morte do Poetinha. Para contextualizar a criação, passo a palavra ao próprio Vinicius de Moraes, em relato disposto no encarte da obra. (Quem quiser ir mais a fundo pode ler esta dissertação).
Esboçado o plano da obra, partimos para Brasília a fim de estruturar temas e poemas em contato humano com a cidade. Hóspedes do "Catetinho", hoje tombado como monumento histórico, olhávamos de nossa sala-de-trabalho - a mesma em que o Presidente Kubitschek assinou seus primeiros atos na nova capital - a silhueta quase sobrenatural da cidade na linha extrema do horizonte, recortada contra auroras e poentes de indizível beleza. De madrugada, enquanto víamos congelar-se no ar frio o jato ascencional do Boeing-707, escutávamos também o piar das perdizes e dos jaós, entre as surdas rajadas intermitentes do vento do altiplano.Havia em nós essa tristeza que nasce da beleza, e pavilhávamos os capões de mato com a sensação do irremediável do tempo. Jobim, caçador experimentado e velho piador de pássaros, arremetia mais longe do que eu. Eu voltava, a partir do lindo ôlho dágua do pequeno bosque, para os meus intermináveis passeios na alpendrada do "Catetinho", onde ficava a pensar o texto da Sinfonia e a esperar a comida simples e gostosa que nos dava "a patrôa" de Luciano, o caseiro: o mais antigo funcionário de Brasília. Apraz-me dizer nunca ouvi, ao longo das horas em que Antonio Carlos Jobim mergulhava no mato, um só tiro perturbar o silêncio das velhas planuras. É minha impressão que o músico perdeu a coragem de chumbar seus coleguinhas alados, mesmo quando constituam ótimo comestível, como é o caso das perdizes.
(...)
Dez dias ficamos assim no "Catetinho", nesse dolce far niente de fazer uma Sinfonia, com sentinela à porta, pois a princípio os numerosos turistas punham sempre o nariz na vidraça para constatar como íamos de trabalho. (...)
Falei em piano. É fato. João Milton Prates providenciou-nos um piano que veio de Goiânia. Ajudados por Luciano e três candangos, nós o subimos a braço para o "Catetinho", com mais mêdo de que seus degraus cedessem ao pêso do que de um enfarte do miocárdio. Naturalmente, pois o "Catetinho" é hoje um monumento histórico, e a estátua do Fundador de Brasília parecia apreensiva, sôbre o seu pedestal no terreiro em frente, com os resultados de nossa operação.
O assunto ressurgiu em entrevista de Tom Jobim a Jô Soares, em 1993 (um ano antes de o músico morrer). Jobim respondeu sobre Brasília: Sinfonia da Alvorada:
Eu nunca escuto. Mas quando escuto, parece uma piada. Diante do que está lá... Aquele sonho do Vinicius [de Moraes], Juscelino [Kubitschek], Oscar Niemeyer; a gente acreditando, querendo o Brasil e coisa e tal... A gente fez aquilo tudo com um amor danado. Fala no planalto deserto, na chegada do homem, naqueles campos bonitos do senhor; a gente brincando nos campos do senhor. E era muito bonito. Hoje em dia, quando vejo Brasília, fico um pouco nostálgico, entristecido.
Brasília: Sinfonia da Alvorada está disponível no Spotify e no YouTube: I, II, III, IV e V.
BAÚ
Noé no dilúvio
Greg Lippmann imaginou o mercado hipotecário subprime como um grande cabo de guerra financeiro: em uma ponta estava a máquina de Wall Street provendo os empréstimos, empacotando os títulos e reempacotando os piores títulos em CDOs. Quando ficou sem empréstimos, essa máquina criou falsos títulos do nada. Na outra ponta, seu nobre exército de vendedores a descoberto apostou contra os empréstimos. Os otimistas versus os pessimistas. Os fantasiosos versus os realistas. os vendedores de CDSs versus os compradores. Os errados versus os certos. A metáfora estava certa até certo ponto: este ponto. Agora, a metáfora era de dois homens amarrados dentro de um barco, lutando até a morte. Um homem mata o outro, empurra seu corpo inerte lançando-o ao mar – somente para descobrir que ele mesmo foi puxado para fora. “Operar vendido em 2007 e ganhar dinheiro com isso foi divertido, porque éramos os ‘vendidos bandidos’”, disse Steve Eisman. “Em 2008, era o sistema financeiro inteiro que estava em risco. Ainda operávamos vendido. Mas você não quer que o sistema quebre. É como se o dilúvio estivesse prestes a acontecer e você fosse Noé. Você está na arca. Sim, você está bem. Mas não está feliz olhando para o dilúvio. Este não é um momento feliz para Noé.”
Michael Lewis, A Jogada do Século (The Big Short), 2010. Ed. Best Seller, 2011.