EDITORIAL
Bom dia,
Esta é a edição #74 da Enclave, a newsletter listada na bolsa de valores de Zembla.
Semana retrasada, a edição #73 relembrou a Sinfonia da Alvorada, de Tom Jobim e Vinicius de Moraes: leia aqui.
A edição de novembro do Jornal RelevO foi enviada há praticamente duas semanas.
A edição de outubro do RelevO está disponível no site.
HIPERTEXTO
Hiperlinks de Nabokov
Fogo Pálido (1962), de Vladimir Nabokov, é um dos livros favoritos desta newsletter. Sua estrutura pode parecer pouco convidativa, mas sua leitura é proporcionalmente encantadora. Trata-se de um romance dividido em quatro partes: prefácio; poema ("Fogo pálido") de 999 versos; comentário ao poema e índice remissivo.
O personagem John Francis Shade assina a obra poética; o personagem Charles Kinbote, as outras. Acontece que Shade foi assassinado logo antes de completar o milésimo e derradeiro verso de “Fogo Pálido”. Kinbote, seu autointitulado “amigo íntimo, consultor, editor e comentador literário”, responsabiliza-se por analisar a obra.
A partir disso, testemunhamos a epítome do narrador pouco confiável, uma constante carta na manga de Nabokov (vide O olho e A verdadeira vida de Sebastian Knight).
Afinal, Kinbote é um comentador histriônico. Oriundo da fictícia Zembla, ele enxerga no poema – apesar de “deliberadamente e drasticamente escoimado de minhas contribuições” – referências claras à sua terra natal, convicto de ter convencido um entediado Shade a incluí-las.
Esses elementos compõem as dores e delícias de Fogo Pálido, livro capaz de fornecer mais dúvidas do que certezas. Engraçado, trágico e cheio de detalhes (o índice remissivo não deve ser ignorado), o romance nos lega outra dúvida: como lê-lo? Afinal, versos levam a notas, que levam a outros versos ou notas, que etc. Dispomos de vários caminhos!
Fogo Pálido não é simplesmente "não linear" – o curso tradicional de leitura não é necessariamente menor que qualquer outra abordagem. Como bem definiu Espen Aarseth, o livro é muito mais multicursal – a exemplo da (hipertextual) navegação na internet.
Não por acaso, Ted Nelson, criador do termo “hipertexto”, tentou adaptar Fogo Pálido a um formato de hiperlinks em 1969, na busca por fornecer uma demonstração do fenômeno que ele havia registrado em 1965: “permita-me apresentar a palavra 'hipertexto' para significar um corpo de materiais escritos ou pictóricos interconectado em uma maneira tão complexa que não poderia ser convenientemente apresentada ou representada em papel”.
Hoje, existem pelo menos seis versões hipertextuais de Fogo Pálido, de acordo com Simon Rowberry, professor da Universidade de Stirling. Páginas na internet permitem navegar por meio de cliques entre as notas fornecidas por Nabokov (aqui um exemplo).
Rowberry também é responsável pelo gráfico na abertura deste texto (em alta resolução aqui), que salienta as conexões internas do romance. Segundo ele, há 504 referências explícitas na obra: 37% delas levam ao poema; 63%, a outras notas.
Nabokov costurou Fogo Pálido com engenhosidade abismal. Isso por si só não transformaria o romance em uma obra-prima: é necessário conteúdo para corresponder a essa forma. Mas este lado – que malemal pincelamos – ficará para outro dia. Adiantamos que, sem dúvidas, trata-se de uma obra-prima.
BAÚ
A ida do boêmio
PLAYBOY – Mas foi em São Paulo que você foi preso.
NELSON – Foi, mas a intenção era parar. Fui, primeiro, para um hotel. Depois, comprei uma casa no Parque Continental, em Osasco. Em seguida, comprei uma casa no Brooklin. Fui preso nessa casa, em 1965.
PLAYBOY – Como aconteceu?
NELSON – A pessoa de quem eu comprava o pó me denunciou. Deixei de comprar dele e ele então foi à polícia, dizendo que eu tinha um quilo de cocaína em casa e que estava vendendo, o que era mentira. Os policiais arrombaram minha porta e me algemaram. Fiquei uma noite na delegacia e no dia seguinte fui para o Presídio Tiradentes. Um ou dois meses depois fui a julgamento e ficou esclarecida a história. Pude provar que não era traficante. De lá fui fazer tratamento numa casa de saúde e depois fui para casa, onde fiquei me recuperando.
(...)
Aluguei uma casa na Rua João Moura, em Pinheiros, me tranquei no quarto e joguei a chave pra minha mulher. Recebia a comida por baixo da porta. Se não fosse assim, ia cheirar de novo. Com acompanhamento médico, ficava o tempo todo dopado, para o meu organismo reagir à abstinência da droga. Amarguei o inferno durante seis meses. Dormia, no máximo, uns 20 minutos por noite, e ainda assim sentado. Até que um dia comecei a melhorar. Cheguei a dormir três horas seguidas. Comuniquei ao médico, que veio em casa e me receitou outros calmantes. Aí dormi bem, pela primeira vez em muito tempo. Acordei umas 6 da manhã, fui até o quintal e vi um padeiro entregando o leite, uma mulher varrendo a calçada. Foi a visão mais linda que eu já tive. Comecei a chorar. Pensei: “A vida está aqui”. Ganhei uma alma nova. Passei a fazer uns 20 shows por mês. A música foi minha terapia.
Nelson Gonçalves, entrevista à revista Playboy, 1998.
AMARCORD
Anna Coleman Ladd
Publicado originalmente na edição #22, em outubro de 2015.
Argila e massa de modelar eram os principais materiais utilizados por Anna Coleman Ladd na tentativa de restaurar rostos desfigurados na Primeira Guerra Mundial. A escultora, nascida nos Estados Unidos e educada na Europa, usava seu estúdio em Paris para reconstruir as faces de quem havia sido injuriado em combate. A partir dos moldes de argila e massa, Ladd criava uma prótese de cobre galvanizado e a pintava conforme a pele do atendido.
Antes da guerra, Anna Coleman já havia se envolvido com fotografia, dramaturgia e literatura, além das próprias peças que esculpia – geralmente aplicadas na decoração de fontes. O casamento com Maynard Ladd, médico da Cruz Vermelha, ajudou a conectar seu enorme talento com uma causa interessantíssima. Em Paris, cada máscara levava cerca de um mês para ficar pronta, tendo vida útil de alguns anos. Estima-se que Ladd tenha produzido mais de 185 peças.
Todas as informações foram extraídas desta matéria na Smithsonian, ainda mais recomendada pela galeria de fotos. Interessados também podem assistir a este curto vídeo do estúdio, que oferece uma dimensão maior do trabalho de Ladd.