O bar onde gostaríamos de encher a cara
Enclave #76: Singapura. Tom Jobim e João Gilberto. Neuromancer, por... Timothy Leary.
EDITORIAL
Bom dia,
Esta é a edição #76 da Enclave, a newsletter com sabor umami.
Semana retrasada, a edição #75 tratou de polvos! Leia aqui.
A edição de dezembro do Jornal RelevO já foi finalizada e enviada pelos Correios. A de novembro está disponível no nosso site.
HIPERTEXTO
O bar onde gostaríamos de encher a cara
Fechamos este texto na sexta-feira à tarde, portanto não estranhem o conteúdo na segunda pela manhã.
Até porque 9h da manhã em Brasília são 20h em Singapura (com s), onde gostaríamos de estar – com ou sem chiclete – neste momento. Mais especificamente no imponente Parkview Square, mais especificamente no Atlas Bar.
Primeiro, o edifício. Inspirado no Chanin Building – este construído no fim da década de 1920 em Nova York –, o Parkview exala uma sofisticação art déco parte Gatsby, parte Gotham City, parte banda de jazz, parte Bioshock, parte possível excesso brega porém saudável.
Com 144 metros de altura, é apenas o 80º prédio mais alto de Singapura, mas certamente um dos mais fascinantes. Fica pertinho (5 minutos de carro, segundo o Google) do megalomaníaco Marina Bay Sands, um complexo difícil de resumir, fácil de enxergar e propício a gastar dinheiro – isto é, se você tem algum. O Parkview Square ficou pronto em 2002.
Nele, brilha o Atlas Bar, mais bem representado por imagens do que por palavras (aliás, mais fotos no Cool Hunter, de onde tiramos a primeira). Ele é, enfim, o bar onde gostaríamos de encher a cara elegantemente.
E é isso aí. A Enclave de hoje é bastante autoexplicativa.
Ok, é claro que dinheiro não traz necessariamente elegância ("a arte de não se fazer notar aliada ao cuidado sutil de se deixar distinguir", Paul Valéry), o que não significa que ele a impeça. O Atlas Bar é o tipo de ambiente que faz você querer se vestir como um personagem de Mad Men; sua imponência intimida com reverência, não desdém.
E aquele acervo...
O bar dispõe de um dos maiores acervos de gin (com n ou m) do mundo, talvez o maior. É tão grande que os funcionários têm que basicamente voar para pegar certas garrafas (ou tinham, não sei confirmar se essa logística permanece). Entre as raridades, há até champanhe resgatado de naufrágio (e servido no Titanic, mas não resgatado de lá – aliás, eis aqui um belo vídeo do acervo do Atlas).
Mas esses materiais estupidamente caros nos interessam menos. Os apenas muito caros nos cativam mais, então quem dera sentar-se nesse salão espaçoso, sentir-se um espião na Guerra Fria (em plena "Disneylândia com pena de morte") e saborear um lindo, refrescante e inflacionado whisky sour sob a meia-luz dos desejos – caros demais, distantes demais, inconvenientes demais – materializados.
Ah, segundo o site oficial, é proibido entrar de bermuda e/ou chinelo.
BAÚ
Tom Jobim, João Gilberto: espatifados
(...) Assim, no dia 10 de julho de 1958, João Gilberto estava no estúdio gravando Bim-bom e Chega de saudade. Ou melhor, terminava, finalmente, a gravação, pois os depoimentos do pessoal envolvido no disco só discordavam sobre o número de dias que os músicos tiveram de voltar ao estúdio para que tudo saísse exatamente como João Gilberto queria. Para o baterista Juquinha, a gravação durou um mês. Começou pela insólita (para os padrões da época) exigência de ter um microfone para a voz e outro para o violão. O arranjo de Tom Jobim para Chega de saudade, embora bem mais leve do que o que escrevera para o disco de Elizeth Cardoso (a partir da introdução, com o predomínio da magistral flauta de Copinha), foi "aparado" diariamente por João Gilberto. Vários compassos de violino, viola e celo desapareceram do arranjo. Mas João não ficou satisfeito nem com o pouco que restou: quando entravam as cordas, ele fazia aquela cara típica de quem ouve, por exemplo, o som de uma faca afiada tentando cortar uma pedra. Tudo indicava que se arrepiava todo. Para Tom Jobim foi um exercício de paciência muito importante para as gravações que estavam por vir. Mas, para João Gilberto, o que ficou foi uma lembrança cheia de ternura, como revelaria à revista Veja, logo depois da morte de Tom: "Lembro-me dele na gravação de Chega de saudade. Ele estava na cabine e eu no estúdio. Tom estava olhando. Tinha os olhos emocionados, entusiasmados".
O disco foi lançado pela Odeon no suplemento de agosto de 1958. Algumas versões do lançamento são bastante conhecidas, como a reação de Osvaldo Guzonni, chefe de vendas de São Paulo, que convocou os demais vendedores para ouvir o disco de maneira pouco ortodoxa: "Ouçam a merda que o Rio de Janeiro nos manda". Depois da audição, espatifou o disco no chão. O curioso é que foram feitas tentativas para desmentir o fato, mas o próprio Guzonni se encarregou de confirmá-lo inúmeras vezes, sempre rindo muito da gafe que cometera.
Sérgio Cabral, Antonio Carlos Jobim: uma biografia, 2008 (Ed. Lazuli; Companhia Editora Nacional).
AMARCORD
Neuromancer, por... Timothy Leary
Publicado originalmente na edição #10, em maio de 2015.
No rol de grandes projetos que nunca saíram do papel, um game chama atenção. Trata-se de uma adaptação do romance Neuromancer cheia de peculiaridades, a primeira delas cabendo ao envolvimento de Timothy Leary, psicólogo famoso por pesquisar potenciais efeitos do LSD. Professor em Harvard, Leary foi um dos responsáveis pelo experimento que possibilitou um grupo de controle a utilizar psilocibina (dos cogumelos alucinógenos) em uma capela, visando à resposta para a possibilidade de enteógenos favorecerem experiências religiosas (aparentemente… Sim).
Pioneiro em estudos de cibernética, trans-humanismo, experiências místicas e podendo influenciar diretamente de Aldous Huxley a John Lennon, o gênio-doidão já se aventurava no terreno da criação de games nos anos 1980, tendo desenvolvido o curioso Mind Mirror em 1985. Com os direitos de Neuromancer comprados, sua adaptação contaria com a ajuda de nada menos que William S. Burroughs para o roteiro.
Além dele, Keith Haring se responsabilizaria pela parte visual, enquanto a banda Devo, famosa por suas ideias ousadas no pós-punk, cuidaria da trilha sonora. Por sua vez, Helmut Newton contribuiria com a fotografia. Diz-se ainda que haveria várias participações especiais, como a de David Byrne, retratado na seguinte imagem, uma das poucas desenvolvidas.
O projeto, descoberto tão somente após os arquivos de Leary serem abertos, poucos anos atrás, tinha tudo para se encaixar com o romance de William Gibson, obra responsável pela introdução do cyberpunk na cultura popular (e inspiração inegável para um colosso de derivadas, vide Matrix). Sem sair do papel, o game possibilitaria caminhos diferentes em sua narrativa. Eventualmente, Leary repassaria os direitos para a Interplay, que de fato lançou um jogo inspirado no livro, no final da década de 80. As semelhanças, no entanto, limitam-se à trilha sonora do Devo – esse você pode jogar clicando aqui.