Mère Louise
Enclave #79: cabaré carioca, diretor fictício, democracia do mais ou menos.
EDITORIAL
Bom dia,
Esta é a edição #79 da Enclave, a newsletter que mais cresce entre aquelas cujos nomes remetem a fronteiras geográficas. Provavelmente.
Na última edição da Enclave (#78), disparada em dezembro de 2020, acumulamos citações do nosso baú: confira aqui.
A edição de fevereiro do Jornal RelevO já foi finalizada, impressa e enviada pelos Correios. Este editor contribuiu (palavra forte) com uma ficção em que Antonio Carlos Jobim e David Bowie se tornam amigos no Rio de Janeiro e gravam dois discos juntos.
A edição de janeiro do RelevO está disponível em nosso site.
AOS NOVOS
Tivemos a entrada de vários novos assinantes com o chamado de início de ano para publicações no RelevO, o que reforça como a Enclave cresce mesmo quando não atrapalha.
Para você que está recebendo uma edição pela primeira vez hoje, saiba que estamos honrados e que desde já pedimos desculpas pela futura decepção ou pelo futuro desinteresse. Desinscrever-se é muito fácil e você pode desistir agora mesmo clicando aqui.
O que é a Enclave? É a newsletter do Jornal RelevO, impresso literário editado em Curitiba (na verdade, Araucária...). Essa newsletter é disparada semanalmente (às vezes, semanalmente) e existe desde 2015, embora só agora atinja uma regularidade respeitável, pois vivia de hiatos.
Apesar de o RelevO ser um jornal literário, a Enclave não se limita à literatura. É muito mais – e, principalmente, muito menos.
Nossos temas são bastante variados (basta ver nosso arquivo) e você pode sugerir outros (até mesmo escrever, se quiser; inclusive, por favor). Uma edição consiste tipicamente de um texto mais uma citação; esporadicamente incluímos algum material antigo. Tudo vai para o site do RelevO.
E você que já nos assinava, ainda não desistiu e às vezes até nos lê: muito, muito obrigado. Quando gostar da Enclave, por favor encaminhe o e-mail a amigos e/ou possíveis interessados.
HIPERTEXTO
Mère Louise, um cabaré western em Copacabana
1907, Rio de Janeiro, Copacabana. Muito perto de onde seria o Forte de Copacabana, que ainda não existia (ele foi inaugurado em 1914), exatamente na esquina das atuais R. Francisco Otaviano e Av. Atlântica. Ali funcionava o Mère Louise, restaurante de frutos do mar administrado pela francesa Louise Chabas.
"Restaurante" é uma simplificação. O Mère Louise era um verdadeiro cabaré parisiense, um café dançante à beira-mar carioca. Lembrando que o Rio de Janeiro ainda era a capital do Brasil – e seguia um forte processo de urbanização.
Segundo Ruy Castro, em A Noite do Meu Bem, o estabelecimento funcionava "ao estilo de um saloon do Oeste americano, com varanda, portas em vaivém dando para o salão, piano, balcão, espelho e mesas, tudo em torno de uma cadeira de balanço da qual Madame Louise controlava o movimento. Apesar do ambiente mais propício a vaqueiros, seus clientes eram a nata letrada e boêmia do Rio: políticos, ministros de Estado, diplomatas, artistas e jornalistas, alguns acompanhados de 'amigas' ou admiradoras".
Havia shows, havia comida, havia diplomacia e baixaria. Mas, principalmente, havia serviço – à noite, permanecia sempre aberto – e havia logística – os bondes próximos rodavam até as duas da manhã (podemos ver trilhos na imagem que abre o texto). A seguinte imagem, também do incrível Augusto Malta e também retirada do canal Rio de Janeiro Aqui, mostra o cabaré mais de perto, já num cenário mais urbanizado, com iluminação. Nela, vemos a Av. Atlântica e a praia à direita.
Para as emergências, também havia quartos. "Louise conhecia a todos pelo nome e ia de mesa em mesa, falando com cada um. Tal intimidade tornava natural que, em emergências, ela cedesse – pela escorchante diária de 6 mil-réis – discretos aposentos nos fundos para quem precisasse 'repousar'", ainda de acordo com Castro.
Movimentado por figurões, o estabelecimento era visado. As brigas eram comuns; os tiroteios, pouco raros. A atratividade da região também trazia um problema um tanto incontornável: alguns clientes, depois de encher o bucho e a cara, entravam no mar. O resultado é óbvio.
Idosa – mas, principalmente, cansada de confusões e de calotes –, Louise Chabas vendeu o local em 1911. O Mère Louise sobreviveu até o início da década de 1930, quando foi demolido e deu lugar ao Cassino Atlântico. Hoje, ali existe o Shopping Cassino Atlântico. Chabas se aposentou, instalou-se num asilo, desistiu da aposentadoria e administrou outros estabelecimentos. Morreu em 1918, aos 73 anos.
Dezoito menos um
O que este civil garboso faz no meio dos militares da Revolta do Forte de Copacabana, em 1922? Qual é a relação desse evento com o Mère Louise? Pela última vez (hoje!), emprestamos um trecho de Ruy Castro:
"Na tarde do dia 5 de julho de 1922, em que dezoito oficiais e soldados rebeldes deixaram o Forte de Copacabana para se bater até a morte contra as forças do governo de Epitácio Pessoa – os '18 do Forte' –, o Mère Louise não tinha por que se meter. Aliás, tudo recomendava a neutralidade. Mas, quando os militares passaram pela sua porta, um de seus clientes, o gaúcho Otavio Corrêa, veio lá de dentro, chegou à calçada e lhes fez um aceno. Estava aderindo à rebelião e queria uma arma. O tenente Newton Prado acedeu e entregou-lhe um fuzil Mauser. Corrêa juntou-se a eles e, na mais famosa foto que se fez da marcha, pode-se vê-lo de terno escuro e chapéu-chile – o único civil da foto –, na primeira fila. Talvez por isso tenha sido um dos primeiros a ser abatido, antes mesmo que chegassem à rua Bolívar. Com isso, o Mère Louise tinha agora um mártir."
Nem sempre o espírito de quem acaba de ser motivado por Cristiano Ronaldo gera resultado.
BAÚ
Democracia do mais ou menos
Sempre desconfiei dos que atribuem coerência demais à trajetória dos atores políticos. O jogo do poder frequentemente adquire uma lógica própria, há o erro, há o desvio, o exagero e, por fim, há sempre muita teoria disponível para interpretar e ajustar a realidade. O fato é que [Carlos] Lacerda fez do 'golpismo democrático' a marca maior de sua personalidade política. Aquela que produziu o 'lacerdismo', uma arte, um pecado da política brasileira, que consiste em pôr em xeque as instituições da República quando interessa. Uma arte sem ideologia, frequentemente feita de bons argumentos. Pecado que ninguém mais, felizmente, soube cometer como Lacerda.
Quem sabe o lacerdismo tivesse um componente estético. Lacerda foi, na definição de Rodrigo, alguém com a 'trágica incapacidade de aceitar o mais ou menos, na terra do mais ou menos'. O ponto é que a democracia vive, em boa medida, do mais ou menos. Do acordo, da procura pelo consenso. A vida de Lacerda foi a recusa permanente do acordo. Talvez tenha sido seu personagem: o moralista da República. Atores políticos elegem seus personagens. Juscelino escolheu ser o otimista, o democrata, o 'sonhador do Brasil'; Tancredo escolheu ser a tradução discreta do bom-senso. Lacerda fez sua escolha. Nunca pareceu arrependido, mesmo na derrota.
Fernando Schüler, 2014.
AMARCORD
Alan Smithee, diretor fictício
Publicado originalmente na edição #36, em junho de 2016.
Com dezenas e dezenas de filmes creditados desde a década de 1960, Alan (Allen) Smithee é, facilmente, um dos diretores mais polêmicos da história do cinema. Isso porque, longe de alguma prisão por estupro ou de um eventual relacionamento com a enteada, Alan Smithee não existe. Ao menos não fora do IMDB.
Só Matando foi lançado em 1969, e, com ele, um problema. O longa-metragem contou com dois diretores: o primeiro deles, substituído durante o processo, não queria que seu nome assinasse a produção; o segundo, bom, também não. Como o uso de pseudônimos não era permitido, foi necessário um acordo para que o Directors Guild of America (DGA) liberasse a oficialização de Allen Smithee, espantalho criativo de um filme surpreendentemente elogiado.
O nome foi desenvolvido a partir de ‘Al Smith’, considerado comum demais. Allen se tornou Alan, e, desde então, diretores vêm assumindo o pseudônimo, de imediato ou de forma retroativa, quando alegam não terem tido liberdade suficiente na edição de uma obra, principalmente ao admitirem que o resultado final é um grande dejeto.
A palhaçada esfriou após An Alan Smithee film: Burn Hollywood Burn (1998), filme metalinguístico com Eric Idle, do Monty Python, no papel principal. Idle interpreta Alan Smithee – rá! –, diretor de cinema querendo apagar seu nome de um longa-metragem, mas impossibilitado por, afinal, chamar-se Alan Smithee. A película foi um fracasso absoluto de público e crítica, e o diretor Arthur Hiller, alegando interferências diretas na edição, assinou como… Pois é.