Jessica Walter
Enclave #84: If that's a veiled criticism about me, I won't hear it and I won't respond to it. Mais: Thomas Skidmore; Marlon Brando.
EDITORIAL
Bom dia,
Esta é a edição #84 da Enclave, a newsletter que compra na baixa e vende também na baixa. Estamos há algumas edições sem falar de Tom Jobim, David Bowie ou Blade Runner. Provavelmente.
Na última edição da Enclave (#83), escrevemos sobre a bela, melancólica e prazerosa Tales from the Loop: leia aqui.
A edição de abril do Jornal RelevO já foi concluída, impressa e enviada. A página especial deste enclave traz um guia de reconhecimento de pintores.
A edição de março está disponível em nosso site.
HIPERTEXTO
Jessica Walter (1941-2021)
A atriz Jessica Walter morreu em 25 de março, isto é, há dez dias. Ela teve uma carreira longeva, com destaque para Play Misty for Me (Perversa Paixão, 1971), em que sua personagem, Evelyn, persegue Clint Eastwood, por sinal em sua estreia como diretor. Também ganhou um Emmy em 1975, com a série (e a protagonista) Amy Prentiss (1974).
Como a maioria da minha geração, no entanto, conheci Jessica Walter graças a Arrested Development (2003), brilhante série de comédia que acompanha os Bluth, uma família decadente e picareta em busca de algum alinhamento interno.
Arrested Development acabou precocemente (2006) e retornou desnecessariamente (2013, depois 2018). Nesse meio tempo, influenciou qualquer produção audiovisual que visasse a fazer alguém rir. Criada por Mitchell Hurwitz e narrada por Ron Howard (aquele), a série atingiu uma execução absoluta em sua proposta errática.
Hurwitz criou personagens tão problemáticos como marcantes, com frases igualmente marcantes e dramas visíveis, expostos em comentários banhados no mais absoluto cinismo. Isso tudo rodando por meio de um elenco muito acima da média, capaz de conferir o dinamismo necessário para o roteiro funcionar.
Afinal, em sua produção original (2003-06), o que havia de incomparável em Arrested Development era o ritmo. Este é justamente o que afasta quem (ainda) não a compreende, mas encanta quem compra a ideia. Uma vez que o espectador entra no ritmo dessa dança, ele se vê diante de uma miríade de caminhos para rir (inclusive com piadas escondidas).
E Lucille Bluth, interpretada por Jessica Walter, é consistentemente a personagem mais engraçada da série mais engraçada de sua época. Lucille é a matriarca alcoólatra, cruel, elitista, controladora, ciumenta, xenófoba e racista da família.
O que poderia gerar uma caricatura unidimensional ganha aquele contorno de carisma que apenas a execução primorosa proporciona. Com suas caras e bocas, sua entonação, seu alcance e seu timing, Jessica Walter elevou a personagem a um nível em que é simplesmente impossível detestar Lucille Bluth, não importa quão detestável ela seja.
Não à toa, em Archer (2009–), a personagem Malory Archer, mãe do protagonista – e dublada por Walter –, é praticamente uma reprodução de Lucille Bluth (e, outra vez, rouba qualquer cena). Porque todo mundo conhece alguma Lucille, mas ninguém conhece essa Lucille. Tal amálgama de perversão e sagacidade só é possível com Jessica Walter.
Nos acostumamos com a morte das figuras que admiramos; a verdade é que, a essa altura (da vida pessoal e da civilização), ela impacta cada vez menos. Mas algumas, rompendo com a lógica do afeto, marcam mais que o esperado. A de Jessica Walter sensibiliza por alguns motivos imediatos:
Sentimos uma espécie de carinho latente e inesgotável por quem é capaz de nos fazer rir.
Ela era um componente extraordinário de (ao menos) uma obra extraordinária.
A atriz visivelmente não compartilhava dos traços de personalidade de Lucille/Malory, o que só reforça sua qualidade.
Descanse em paz, Jessica. I'll be in the hospital bar.
BAÚ
Skidmore: classe média confusa e dividida
O golpe de 10 de novembro foi o triunfo do desejo de Vargas, evidente havia muito tempo, de permanecer no cargo além do mandato legal, que expiraria em 1938. Desde 1935 ele empurrava os adversários para uma posição em que lhe fosse possível desacreditá-los ou refreá-los, ao mesmo tempo que, cuidadosamente, cultivava o apoio de bem estabelecidos grupos de poder, como os cafeicultores e a cúpula militar. Para apaziguar os cafeicultores, por exemplo, em outubro de 1937 Vargas havia baixado o teto dos preços do café brasileiro, num esforço para aumentar as vendas (e, quem sabe, a renda total das exportações) no exterior. No que dizia respeito aos militares, o comando do Exército planejava uma solução autoritária para a crise política brasileira desde a revolta comunista de novembro de 1935. A cúpula militar achava que o Brasil não tinha capacidade para aguentar a confusão e a indecisão da disputa política aberta, e amedrontava-se com a possibilidade de novos avanços dos radicais de esquerda – que, se um dia chegassem ao poder, poderiam acabar com o papel de árbitro supremo dos conflitos políticos exercido pelas Forças Armadas. No fim das contas, o golpe de 1937 foi possível porque a classe média, esse pequeno mas importante grupo social capaz de assegurar o equilíbrio de qualquer sistema de eleições livres restrito a eleitores alfabetizados, estava confusa e dividida. Alguns eleitores de classe média continuavam leais a seu tradicional constitucionalismo liberal, e depositaram suas esperanças em Salles Oliveira na campanha de 1937. Outros, perdida a confiança em seu liberalismo original, voltaram-se para o radicalismo de esquerda ou de direita. Ao fazer isso, admitiram na prática que a fórmula liberal já não se aplicava ao Brasil e que estavam, portanto, preparados, ainda que inconscientemente, a aceitar, quase sem protesto, o tipo especial de autoritarismo que Vargas impôs, de súbito, em novembro de 1937. O golpe de novembro de 1937 fechou o sistema político. E todas as questões de força eleitoral nas eleições marcadas para janeiro de 1938 se tornaram acadêmicas.
Thomas E. Skidmore, Brasil: de Getúlio a Castello (1930-64), 1967 (Companhia das Letras, 2010).
AMARCORD
Marlon vs. Brando
Publicado originalmente na edição #14, em junho de 2015.
Quando Al Pacino recusou o papel de protagonista em Apocalypse Now (1979), sua justificativa para o diretor Francis Ford Coppola foi bastante simples: "já sei como vai ser. Você vai subir em um helicóptero e me falar o que fazer, enquanto eu estarei lá embaixo, num pântano, por cinco meses".
Mal sabia ele, muito menos Coppola, que as gravações durariam dezesseis meses. Esse é apenas um dos famosos problemas que perseguiram a criação da película, cujas infinitas tretas são devidamente relatadas no documentário Hearts of Darkness (1991 — o filme, pois, adaptou o romance Coração das Trevas (1899), de Joseph Conrad, ao contexto da Guerra no Vietnã).
Visto que sequer teríamos tempo para relatar muitos perrengues – que vão de incêndio a ataque cardíaco –, destaquemos Marlon Brando, sobre quem já escrevemos na Enclave #6 (especialmente diagramada aqui, p. 14). Brando, afinal, não participou dos 16 meses de filmagem de Apocalypse Now. Para o astro, foram reservadas apenas seis semanas no set construído nas Filipinas, de 2 de setembro a 11 de outubro de 1976.
Se sua obrigação era chegar em forma, com a leitura de Coração das Trevas realizada e suas falas na ponta da língua, o Corleone sênior encontrou Coppola já surpreendentemente gordo, sem ter lido o romance de Conrad e tampouco o roteiro — isso segundo o diretor.
No papel do Coronel Kurtz, enigmático personagem que o protagonista tanto persegue, Marlon Brando dá as caras em apenas 15 dos 153 minutos de filme. O que não evitou problemas. Ah, não mesmo. Ele, que havia recebido um milhão de dólares antecipadamente, negou-se a seguir o roteiro, ameaçou deixar a produção e ficar com o dinheiro.
No fim das contas, improvisou boa parte de seu diálogo, além de um falatório magistral de dezoito minutos, dois dos quais sobreviveram à versão final. Coppola estava tão farto de lidar com a situação que entregou as cenas do ator a Jerry Ziesmer, assistente de direção. Brando também detestava Dennis Hopper, rejeitando compartilhar o set com o colega em questão.
As "brandices" geraram outras consequências técnicas: para não expor sua forma física distante do que se imaginaria para Coronel Kurtz, Marlon Brando foi filmado no escuro, escondido entre sombras, raras partes de seu corpo à mostra. Sua recusa ao sobrenome Kurtz – "não soa americano" – fez com que o personagem tivesse o nome alterado.
Essa recusa, porém, foi reconsiderada por ele mesmo após finalmente ler Coração das Trevas. Entretanto, menções ao personagem já haviam sido gravadas por outros atores, o que exigiu redublagem na pós-produção. (Isso pode ser verificado claramente na cena em que Harrison Ford interage com Martin Sheen, ainda no início da película).
No fim das contas, todas as cenas com o ator são inegavelmente marcantes, e se tornam ainda mais curiosas quando sabemos de todos os problemas que as circundam. Mas recentemente, como um Deus ex machina, acrescentamos que Susan Mizruchi, autora de uma biografia sobre Brando, defende como as afirmações de Coppola sobre o descompromisso de Marlon Brando são redondamente falsas.
Segundo ela, as cartas entre diretor e astro deixam claro como Brando não só foi às Filipinas completamente preparado como ajudou no roteiro por pura dedicação à sua arte.