Há som mais bonito que 'Clair de lune'?
Enclave #86: Debussy; Millôr Fernandes; Alzheimer.
EDITORIAL
Bom dia,
Esta é a edição #86 da Enclave, a newsletter 100% algodão.
Na última edição da Enclave (#85), elogiamos o filme Colateral: leia aqui.
A edição de abril do Jornal RelevO foi enviada no começo do mês. A página especial deste enclave traz um guia de reconhecimento de pintores.
A edição de março está disponível em nosso site.
Em função do fechamento da próxima edição do RelevO, é provável que não tenhamos Enclave na semana que vem. Retornamos na primeira semana de maio!
HIPERTEXTO
'Clair de lune': beleza suprema
O terceiro movimento da Suite bergamasque (1905), de Claude Debussy (1862-1918), atende por 'Clair de lune' (luar) e teve como inspiração o poema homônimo de Paul Verlaine (disponível aqui).
E esse pedaço, esse breve e notável movimento, certamente é uma das criações musicais mais sublimes de sempre. Você já deve ter escutado 'Clair de lune' por aí, conscientemente ou não. Se já conhece, vale reencontrar. Se não conhece, não custa dedicar uns minutos, pois há muito a se ganhar.
A Enclave de hoje, portanto, prefere mostrar a descrever. Limitamo-nos a traduzir 'Clair de lune' como uma contemplação da solidão; uma brisa noturna; um chamado às belezas da dor.
Deixamos algumas sugestões nos seguintes links. Com certeza há muito mais pela internet.
Suite bergamasque completa
Seong-Jin Cho (primeira parte) / Jean-Efflam Bavouzet (segunda parte)
Alain Planès
Gustave Cloëz & André Caplet (orquestrada)'Clair de lune'
Por uma hora
Leopold Stokowski (orquestrada)
Lucien Caillet (orquestrada)
Roxane Elfasci (violão)
Ray Chen & Julio Elizalde (piano e violino)Bônus
Kamasi Washington - 'Clair de lune'
Susumu Yokota - 'Purple Rose Minuet'
Polo & Pan - 'Pays Imaginaire'
BAÚ
Millôr Fernandes
Entre Freud e Marx, um afirmando o pan-sexualismo, outro o pan-economismo, estou mais com o último. Em inúmeras ocasiões da vida o sexo não está presente. Nem direta, nem indiretamente. Nem materialmente, nem por inferência. Nem na superfície, nem nas profundidades do psíquico. Já o sentido econômico da vida é total e universal. Sem seu sentido econômico a vida não existe. Sem economia (representada por qualquer esforço humano, horas-trabalho) não se nasce nem se morre. E nas horas de confronto entre sexo e necessidade econômica Freud perde para Marx de goleada. Coloquem diante de um jovem que passou tempo indeterminado abandonado no deserto, uma linda mulher e um magnífico prato de comida e ele só será atraído pela mulher depois de encher o estômago. Pode-se dar uma colher de chá a Freud apenas afirmando que quando um homem tem fome não há nada mais sensual do que a nudez de um franguinho no espeto. [Obras Completas, p. 6, 1970.]
Num país em que o salário mínimo não atinge ¼ da população, criar conceituações morais, falar em drogas, vícios, excessos sexuais ou morais é inútil e ridículo. É aconselhar as pessoas a fugirem de tentações que jamais se darão ao trabalho de tentá-las. [Conversa com Carlos Drummond de Andrade, 1973.]
Millôr Fernandes. Livro Vermelho dos Pensamentos de Millôr, 1973, Ed. Nórdica.
AMARCORD
Utermohlen: representação do Alzheimer
Durante sua vida, o artista William Utermohlen (1933-2007) não foi genial. Suas telas não estão nos maiores museus do mundo e seu nome não tem grande relevância para historiadores de arte. Há uma situação singular, no entanto, que fez com que ele produzisse alguns dos trabalhos mais chocantes da arte contemporânea.
Aos 61 anos, o americano foi diagnosticado com Doença de Alzheimer, a demência mais frequente em todo o mundo. Seu sintoma mais conhecido e precoce é a perda de memória. Com o agravamento da doença, porém, o paciente pode sofrer de alucinações visuais, agressividade, perda de coordenação motora, além do constante declínio cognitivo.
Certamente, não se trata de um prospecto agradável, mas infelizmente ainda não há cura ou tratamento efetivo para conter sua evolução. Diante do diagnóstico, o artista iniciou uma série de autorretratos que viriam a ser sua janela para o mundo, um insight da sua cada vez mais distante consciência.
O primeiro quadro da nova série, de 1995, mostra o pintor sentado, segurando firme a mesa à sua frente, como se tentasse se ancorar no meio do espaço vazio que o circunda. As obras seguintes se tornam gradativamente mais abstratas e sombrias, atestando a progressão de sua condição médica e nos levando a esse ambiente misterioso, efêmero, desconfortável e perturbador que é a demência.
O último autorretrato, já em 2000, é o mais devastador. No meio do vazio paira uma cabeça – ou o que era pra ser uma cabeça – sem olhos, orelha, boca ou nariz definidos; até mesmo o olhar, algo que estava sempre presente em suas telas encontra-se perdido. Não há sentido ou contato com o mundo externo.
Pouco tempo depois de realizar sua última obra, Utermohlen foi internado em um asilo, onde morreu em 2007.