Nossa bandeira jamais será... igual?
Enclave #93: entre Haiti e Liechtenstein. Raymond Chandler vs. ficção científica. Sorriso arcaico.
EDITORIAL
Bom dia,
Esta é a edição #93 da Enclave, a newsletter que desloca o goleiro.
Na última edição da Enclave (#92), comentamos como uma dupla de artistas queimou 1 milhão de libras esterlinas: leia aqui.
A edição de julho do Jornal RelevO foi finalizada, impressa e enviada nos últimos dias.
Por sua vez, a edição de junho está disponível em nosso site.
HIPERTEXTO
Bandeiras...
Tal qual a próxima Olimpíada (Tóquio 2020), que se iniciará no fim de julho (de 2021), os Jogos Olímpicos de 1936, em Berlim, foram um tanto atípicos, embora por razões bem distintas. Afinal, havia o fator Hitler, que por sinal ainda não tinha assumido como chanceler da Alemanha – o que ocorreu em 1933 – quando a sede do evento foi escolhida, isto é, em 1931.
Em 1936, no entanto, Berlim já estava devidamente preparada (nos padrões do Partido Nazista) para receber o mundo e propagar o arianismo que excitava seu comandante. Isso incluía a exclusão de atletas judeus da delegação alemã, processo iniciado já em 1933.
Diante de tensões em qualquer esfera, houve ameaça internacional de boicote. Por sua vez, isso permitiu a participação de judeus e negros, o que possibilitaria momentos belíssimos como a histórica vitória de Jesse Owens.
Mas todos esses fatos são bastante conhecidos. No momento, não trataremos de nenhuma das bandeiras (literais ou figuradas) mencionadas. Com seu olhar atento ao irrisório, porém curioso, a Enclave – sem querer, como toda descoberta alegre – ficou encantada com a seguinte situação.
1º de agosto de 1936, cerimônia de abertura, estádio Olímpico de Berlim, 49 nações. O Haiti desfila com sua bandeira civil:
Participando do mesmo ritual, a delegação de Liechtenstein estranha. Isso porque ela se via representava pela seguinte bandeira:
Nem um, nem outro sabia até os Jogos Olímpicos de 1936: Haiti e Liechtenstein tinham a mesma bandeira desde 1921 (a do principado europeu veio depois, pois os caribenhos já a usavam desde o século 19).
Além da ausência de Wikipédia, a confusão provavelmente ocorreu porque a República do Haiti já dispunha de uma variação dessa bandeira militar com um brasão ao centro, bem semelhante à atual.
A partir disso, os países construíram uma relação diplomática harmoniosa e se mantiveram parceiros comerciais até hoje, incluindo tradicionais programas de intercâmbio entre os governos. "Isso só pode significar algo; nós temos tanto em comum!", afirmaram embaixadores de ambas as nações, enquanto repudiavam Adolf Hitler.
Brincadeira, até parece. Liechtenstein apenas adicionou uma coroa à sua (e só sua) bandeira já no ano seguinte, representando seu principado.
BAÚ
Chandler vs. ficção científica
Você já leu isso que chamam de ficção científica? É uma gréia. Escreve-se assim:
Fiz meu checkout com K19 em Adabaran III e atravessei a escotilha de crumalite no meu modelo 22 Sirius Hardtop. Encaixei o timejector em segunda e fui abrindo caminho entre a relva azul de manda. Minha respiração congelou em pretzels cor-de-rosa. Acionei as barras de calor e os Brylls dispararam em cinco pernas usando as outras duas para produzir vibrações de crylon. A pressão era quase insuportável, mas eu detectei a variação no meu computador de pulso através dos cisícitos transparentes. Apertei o gatilho. O fino raio violeta era frio como o gelo ao atingir os montes cor de ferrugem. Os Brylls se reduziram ao tamanho de meia polegada e eu me apressei a pisoteá-los com o poltex. Mas não foi o suficiente. Um clarão súbito me envolveu e a Quarta Lua acabava de nascer. Eu tinha exatamente quatro segundos para deixar no ponto o desintegrador mas o Google tinha me avisado que não era o bastante. Ele tinha razão.Pagam dinheiro vivo por essa porcaria?
Raymond Chandler¹, carta a seu agente literário, 1953. Tradução de Bráulio Tavares². Mais informações – inclusive sobre o uso do termo "Google" em 1953 – neste link.
AMARCORD
Sorriso arcaico
Publicado originalmente na edição #37, em julho de 2016.
O Sorriso Arcaico é uma expressão facial encontrada principalmente em esculturas do período arcaico da Grécia Antiga, entre 650 e 480 a.C. Não há consenso sobre o motivo pelo qual os artistas da época esculpiam os rostos assim, mas alguns conceitos estão bem estabelecidos.
O período arcaico se desenvolveu após o colapso das civilizações micênicas e a "era das trevas" que a sucedeu. Foi um período de renascimento das artes, no qual os gregos tiveram que "reaprender" a representar o corpo humano. Por isso, a escultura arcaica se caracteriza por uma grande rigidez em sua forma.
Sua influência mais perceptível vem da arte egípcia e de seu estilo monumental. No Egito Antigo, as representações artísticas eram restritas às divindades. O sujeito – um faraó ou um deus antropozoomórfico – deveria demonstrar sua transcendentalidade; e sua expressão facial e corporal, um retrato de sua eternidade.
Esse era provavelmente o papel do sorriso arcaico: conferir um aspecto não natural à obra; indicar que aquilo à mostra não era humano, e sim sobrenatural. É como acontece na iconografia bizantina: não há uma representação fiel do mundo material, mas sim um símbolo de uma perfeição celestial que não pode ser alcançada na Terra. Além disso, esse sorriso contido reflete um estado de bem-estar e felicidade plena.
De fato, nenhuma das figuras apresentadas neste texto parece ter a menor das preocupações. Inclusive, uma das teorias de historiadores da arte é de que essa expressão simboliza a felicidade por meio da ignorância, já que as estátuas realmente têm um ar um tanto avoado.
Outra teoria defende que a escolha dessa boca levemente curvada, com lábios apertados, seria simplesmente uma questão técnica: era difícil talhar detalhes nas cabeças tipicamente arcaicas, em formato de bloco.
Contemporâneos aos gregos arcaicos e vizinhos dos romanos, os etruscos também usavam o mesmo recurso, como podemos visualizar no sensacional Apulu de Veii, de 500 a.C. Independentemente de sua razão de ser, o sorriso arcaico permanece como um ótimo recurso para identificar a origem temporal e espacial das esculturas que o ostentam.
Comparando com obras também gregas, mas de outras épocas, ficam claras as discrepâncias: distingue-se da escultura grega Clássica e de seus semblantes mais sérios e serenos, e ainda mais da expressividade intensa da escultura da época Helenística.