Gop Tun 2022: Não este encontro derradeiro no reino crepuscular
Há diferenças gritantes entre encarar uma festa longa aos 20 anos e fazê-lo aos 30.
Por Mateus Ribeirete, no Jornal RelevO de maio de 2022.
Há diferenças gritantes entre encarar uma festa longa aos 20 anos e fazê-lo aos 30. Aos 20, você não precisa descansar. Sua recuperação é imediata. Você pode virar a noite e jogar futebol. Você não tem ressaca. Suas costas não pesam, suas coxas não ardem, seus pés não desmancham. Nem frio você sente. Se a diferença de idade é pouco expressiva – principalmente na linha do tempo de uma vida adulta completa –, o salto metabólico é assustador. Aos 30, você precisa de planejamento. O antes e o depois. O processo de maturidade pela passagem do tempo se assemelha ao de um atleta profissional, que, em prol da longevidade, passa a fazer escolhas, filtrar jogos, torneios e participações por meio de privações. Aos 20, ele consegue treinar com alguma desenvoltura depois de uma noite em atividades extracampo.
Claro, há exceções. Todo mundo tem um amigo capaz de funcionar 40 horas seguidas sóbrio, ébrio, aditivado, triste, feliz etc. Não é o meu caso; não é o caso da maioria dos seres humanos que, aos 30 anos, desafiam os primeiros sinais de um corpo finalmente capaz de cansar.
No primeiro festival de música eletrônica que cobri pelo Jornal RelevO – o Dekmantel 2017 –, ainda não tinha completado 25. Cabeça e metabolismo estavam mais próximos da ponta mais jovem da comparação. Hoje, aos 29, pareço ter 92, e movido pela minha lassidão (ou melhor, parado por ela), resisti algumas vezes à possibilidade de ir até São Paulo para conferir o Gop Tun Festival. Recusei, neguei, irritei amigos; me considerava um aposentado – precoce – de qualquer festa que exija um deslocamento longo. Uma logística.
Até que, bom, f***-se também, já não fiquei parado, isolado, silencioso por tempo suficiente nos últimos anos? Entrei em contato com o festival e, voila, lá estava eu para mais uma cobertura, ainda sem ter domínio técnico ou repertório para avaliar absolutamente nada. Não faltariam amigos curitibanos transpostos até lá, tratando o retorno às pistas como o verdadeiro Arrebatamento.
Neste Jornal, além do Rolêvo primordial, narrei minhas experiências no Dekmantel 2018, no DGTL 2018 e na TribalTech 2018. Estou certo de que ninguém as leu, nem mesmo os amigos que me acompanharam nas aventuras e desventuras. É nesse panóptico invertido, porém, que vamos adiante fazendo o que sabemos fazer – ou ao menos gostamos de fazer, ao menos enquanto nos abrem portas, ao menos enquanto não temos, de fato, 92 anos.
A decisão tardia me impediu de ir de avião (a não ser que eu quisesse pagar mil reais para isso), então a saga já começou num ônibus goiano, saindo de Curitiba às 23h59 para chegar em São Paulo às 6h30 e, se Deus quisesse, dormir o máximo possível ao longo do dia. Planejamento!
O trajeto, apesar do assento confortável – e de minha genuína predisposição positiva para o veículo em questão – foi angustiante. Sem ver nada à frente, nada ao lado, nada atrás, cada solavanco parecia o prelúdio de um desastre. Da rodoviária para o metrô, do metrô para o hotel, do hotel para a cama. Descanso irregular. Almoço, caminhada. Descanso. Planejamento geriátrico: água, Salonpas, Engov, Neosaldina, Dorflex, palmilha em gel etc. É isso, dois de abril (the cruellest month), vamos ao Gop Tun Festival (curiosamente, lançado antes de Top Gun 2).
A Gop Tun se define como “o casamento musical entre quatro amigos DJs. É uma festa que rodou estados do Brasil e que este ano comemora seu 10º aniversário. Um selo musical já com 27 releases no catálogo”. O coletivo em questão tratou o evento como seu primeiro festival, em que pese a organização do Xama 2020 e a constante parceria com os holandeses do Dekmantel. Assim, o Gop Tun Festival foi montado e realizado no Canindé – o próprio, estádio da saudosa Portuguesa, por sinal primeiro clube a que assisti in loco, um longínquo 1999, quando ela veio ao Couto Pereira para um modorrento zero a zero que viria a me abençoar com o desinteresse pelo clube mandante.
Oficialmente, a festa começava às 13h, mas cheguei à noite. Novamente, planejamento. Meu objetivo era resistir até a penúltima atração, que acabaria às 5h, sem me preocupar com as últimas (5h-8h), pois já não tenho vergonha de admitir que a música eletrônica iluminada pelo sol da manhã me deprime. Enfim, gostaria de começar às 18h, mas me conheço bem o suficiente para entender que, fazendo isso, jamais perduraria até 5h da manhã. Com isso em mente, passei pela entrada às 20h20, já me direcionando ao estande da Jack Daniel’s para celebrar a chegada com um Jack & Coke (R$ 35).
O público estava ora arrumado, ora arrumadíssimo, ora montado para uma premiação celestial. As golas estavam em alta; ou melhor, as golas estavam altas; digo, as golas altas estavam em alta. Alguns looks certamente levaram muito tempo e muitos cliques de inspiração, e notei apenas duas camisas de futebol concorrendo ao troféu Fútbol Hipster (Vasco e Inter de Milão, ambas de aproximadamente 1999). A faixa etária também era mais veterana, com menos jovens adultos (de 21 anos) e vários adultos-adultos (de 30). Me parecia um público mais maduro, talvez mais exigente – nojento, no bom sentido – e acostumado com esse contexto, que pretere ou não se satisfaria com uma mera balada. Mais de 5 mil pessoas passariam pelo Canindé naquela noite, nenhuma delas em função da Portuguesa (que, por sinal, voltaria à primeira divisão do Campeonato Paulista no sábado seguinte, jogando no mesmo estádio, agora consagrado pela música eletrônica). Pensando bem, a Lusa não faz falta alguma.
Ao som, enfim. Para o Gop Tun Festival, procurei saber o mínimo possível sobre qualquer DJ. A ignorância tende a ser uma bênção, uma vez que deixa suas portas da percepção limpas para apreciar aquilo (o som, as luzes) que simplesmente existe diante de você. Como uma festa de música eletrônica é um evento essencialmente sensorial, palavras, classificações e definições em geral podem atrapalhar — motivo pelo qual, sempre que possível, prefiro uma descrição intuitiva de um set como “parecia uma nave espacial diante de uma apreensão intergalática” em vez de, digamos, “tocou minimal techno”. De um modo pessoal, é muito mais concreto; pela mesma lógica com que o sabor da turfa é descrito com mais precisão como um “curativo usado” ou “Merthiolate” (em vez de, bom, “turfa”).
Havia quatro palcos no Gop Tun Festival: um principal (“Main Stage”); outro quase tão principal quanto o principal (“Supernova”); um com mais atrações live (“Não Existe”); outro mais escondido (“Danceteria”), diante da pista de bocha dos sócios da Portuguesa.
O “Main Stage” era um retângulo espaçoso e delimitado por barras de metal. De aspecto mais arejado, não me esclarecia se dispunha de um teto acrílico ou não (e, ao perceber que eu olhava continuamente para o teto – ou céu – como um mentecapto, desconsiderei a questão, afinal sequer chovia). Atrás dele havia uma curta arquibancada. O “Supernova” também era grande e também era um retângulo, mas se projetava no lado maior do polígono, como se o DJ fosse o quarto árbitro e você entrasse pelo lado oposto. Já o “Não Existe”, menor e mais escuro entre os três, tinha um formato de túnel: talvez justamente por conta de seu tamanho, os efeitos visuais impactavam mais. Por fim, a “Danceteria” correspondia ao canto singular do evento, um enclave dentro da própria festa.
Assim, imerso nas trevas do desconhecimento, cheguei trafegando entre os dois primeiros palcos (com Jamie Tiller e Paramida, respectivamente) enquanto me acostumava com o ambiente, até me assentar em Lone, no “Não Existe”. Eram 21h: a dezena de curitibanos alucinados por uma noite de catarse já havia chegado. O inglês Lone (Matt Cutler) comandava seu computador; um baterista comandava uma bateria. A sinergia entre os dois elementos funcionava: é sempre prazeroso ouvir essa reprodução orgânica, uma consonância com que a bateria parece o computador que simula a bateria. Foi uma hora curta, mas suficiente para acumular a euforia que viria a ser queimada nas horas seguintes.
A partir disso, no mesmo palco, Nigga Fox, português de origem angolana, criava uma atmosfera de festa de Matrix, ou clima de Copa do Mundo, com toques de La Grande Belleza. Portanto, havia uma clara transnacionalidade — quem sabe universalidade — no som. Colei um Salonpas. Ainda era cedo: condizente com isso, ele conseguiu animar, aquecer, levantar. O fim de seu set indicava o início da estrela da noite no palco principal. Antes disso, uma observação.
Hoje, DJs se alçam à condição de superstars; naturalmente, o adolescente sonha em montar um set, não uma banda. Mas isso é constatação, não crítica — até porque o mundo pode melhorar muito demovendo alguns indivíduos da guitarra. Porém, algumas estrelas não têm a menor capacidade de produção; não oferecem nada além de uma noite divertida. Novamente, é mais uma constatação do que uma crítica: há mercado para todos, inclusive para meras noites divertidas. Como ensinava Tom Jobim, “autênticos são a avenca e o jequitibá. O que não é autêntico é avenca querer ser jequitibá e vice-versa”. O que às vezes incomoda, portanto, é o tratamento de um animador de festa como um gênio da arte. Esse ponto sempre emerge quando me assusto com a proporção conquistada por algumas figuras do circuito, ou, pior ainda, diante do vício inerente da vida urbana em cobrar posicionamentos públicos (ou simplesmente esperar alguma coisa) de deejays.
Enfim, o raciocínio também me ocorre quando testemunho um grande momento de um disc jockey. Meus amigos, MCDE, o Danilo Plessow, é um espetáculo. É tudo que espero de um DJ de alto nível, isto é, um filho da p*** com repertório extraordinário e capacidade de costurar esse repertório como um alfaiate parisiense. Um bom DJ, via de regra – há várias exceções –, é um nerdalhaço que poderia passar 714 noites em um porão, desde que munido de seu acervo musical e de bons fones de ouvido. Um bom DJ tem cara de quem veio consertar seu computador — e provavelmente saberia fazê-lo. Um bom DJ provavelmente não sabe dançar, e é capaz de nunca ter tentado. Um bom DJ parece controlar o público como um anestesista. Um bom DJ surpreende e comove; traz tensão e alívio. Plessow possibilitou a imersão máxima, a chance de esquecer-se de qualquer outro ambiente enquanto ele migrava entre estilos com a naturalidade de um planador. À minha frente, um casal desferia o beijo mais longo do universo.
Ao longo de duas horas (ele performou por três), transitamos pelo intransitável com as pernas bambas e a cabeça leve. Por isso, foi tão doloroso abandoná-lo antes do fim. Não queria perder os mineiros FBC & Vhoor, afinal em nenhum outro momento seria tão divertido vê-los. A dupla lançou Baile em 2021 e vem colhendo seus frutos: trata-se de um disco bem produzido, simples – no sentido de melódico e preciso, não de simplório – e capaz de trazer leveza. Nostálgico sem ser derivação preguiçosa; atual sem ser besteira efêmera; social sem ser pregação enfadonha, Baile é, entre adjetivos e adjetivos, prato cheio para quem viveu o Miami bass e seus filhos brasileiros, do Furacão 2000 a Claudinho & Buchecha. Também era o único material das atrações que eu conhecia previamente.
Assim, migramos para ver essa dupla em alta, não sem antes, no mesmo palco, enfrentar intermináveis 15 minutos do que parecia uma playlist automática das Lojas Renner – era um DJ. Doía não estar no MCDE, e, principalmente, doía ouvir entulhos como ‘Anunciação (douchebag remix)’. Encerrado o Tártaro, Vhoor assumiu a brincadeira com o batidão melódico que esperávamos, então passou a ser acompanhado por FBC, quando surgiram os hits de Baile. Empolgante, o show comoveu, mas surpreendeu menos que seu momento inicial: ‘Quando o DJ toca’, ‘Delírios’ e ‘Não dá pra explicar’, por sua vez, já são clássicos no cânone da minha vida.
Então, às 3h da manhã, após ter até cantado, já começava a sentir meu corpo novamente, o que não era bom sinal. Me dirigi ao “Supernova”, palco da americana Avalon Emerson, que larga na frente por também ter o semblante de quem veio consertar seu computador. Gostava, admirava, mas minha bexiga e meus pés me conduziam alhures. Não deixei de assistir; tentei prestar atenção; não saí de perto. Em dado momento, sentei-me. O fim. Àquela altura, prestava mais atenção no tremor do aço que separava o caminho da entrada, na dispersão das pedras ao longo do chão, no gotejar da água do mictório. Eram 4h quando oficialmente desisti. Um pouco decepcionado – meu planejamento prometia até 5h –, mas bastante aliviado. Afinal, eu havia sem dúvidas me divertido abraçando, pulando e girando; um homem oco entre empalhados (“Uns nos outros amparados”), o sopro da madrugada dialogando com o frêmito das caixas, cada vez mais abafadas.
Me direcionei à saída, a cabeça ainda amortecida, o corpo em piloto automático. Permaneceram os mais jovens, muitos deles mais velhos que eu. Tomei um longo banho. Tomei Dorflex. Dormi. Enquanto isso, Octo Octa e Eris Drew destruíam no palco principal, de onde saíram às 8h. Fiquei sabendo que perdi.
Ainda é cedo para uma aposentadoria; ainda é cedo para uma aposentadoria precoce. Prestigiar um som tão alto quanto encantador enquanto nos vemos entulhados de amigos: eis uma das poucas válvulas de escape a que temos acesso em uma vida cansativa, repetitiva em seus métodos (“Nossas vozes dessecadas; Quando juntos sussurramos; São quietas e inexpressas”). No domingo, retornei a Curitiba, novamente de ônibus. Uma viagem interminável. Tomei Neosaldina. Não ouvi um minuto de música: o eco do grave ainda preenchia a mente vazia. Na segunda-feira, voltei a treinar boxe depois de alguns anos. Teto preto, quase desmaiei.