O problema da Esperança
Alfajor de casa de reabilitação é tão delicioso que fez consumo de crack da região crescer 55%.
Nesta newsletter, resgatamos textos publicados no Jornal RelevO e já devidamente esquecidos. O conteúdo abaixo foi tragicamente relatado no RelevO edição especial “fake news” (março de 2020). Um bom Carnaval a todos!
Fundadora de centro de reabilitação de jovens em condição de drogadição e produtora de alfajores caseiros é suspeita de liderar rede regional de distribuição de entorpecentes. Esta é a primeira grande reportagem investigativa do Jornal RelevO.
Foi na Índia britânica que o governo, visando controlar a quantidade de cobras venenosas de Deli, ofereceu uma recompensa para cada animal peçonhento morto. O que inicialmente obteve sucesso notável logo recebeu um grande baque: o ser humano, sempre motivado por payoffs, paybacks e pay days, passou a criar cobras para lucrar com a recompensa do governo britânico, que tão logo cortou o programa. As cobras foram soltas, aumentando a população de serpentes na região.
Mas a história de hoje não envolve governos, indianos ou cobras – exceto por Luiz Otávio, cinegrafista de estirpe fofoqueira e rastejante, que sumiu com nossas gravações após seu namorado, nosso colaborador Betão, descobrir que aquela experiência era apenas uma fase de redescobrimento.
A história de hoje, com cobertura exclusiva – e, infelizmente, apenas textual – do Jornal RelevO, acompanha Luiza Cacau, 67, uma doce imigrante de Areia Branca-PR, região conhecida por seus pesque-pagues com oral incluso. Cacau é fundadora do Lar Esperança, casa de reabilitação que vem – ou vinha – ajudando dependentes químicos em Curitiba desde 1998. No último dezembro, o Lar Esperança foi fechado pelas autoridades, ao passo que sua fundadora permanece sob investigação de envolvimento com o tráfico.
Não merece o doce quem não experimentou o amargo
O que deu errado nesse caminho edulcorado? Conversamos com Bráulio “Archer” Cozzido, detetive particular do bairro Bacacheri, região nobre de Curitiba, com muitas quadras de pádel. Vestindo um trenchcoat grafite – “esse casaco paga meu aluguel” – e virando copos de whisky sour às 10h30 de terça-feira no Parque São Lourenço, ele nos informou absolutamente tudo sobre o caso, sem medo de cobras ou robalos.
Cozzido, no entanto, não nos contou nada que já não havia sido divulgado pela grande mídia, complementando com “o que vocês esperavam? Não tenho relação nenhuma com esse caso; eu basicamente presto serviço para esposas desconfiadas”. Descobrimos que Bráulio Cozzido mora num furgão desde 2012 e aprendemos a não confiar cegamente em fumantes com voz de barítono e casacos que ultrapassam o joelho, não importa de que país esses casacos venham.
O problema do Lar Esperança é muito mais simples – e ao mesmo tempo complexo. Para arcar com os custos da humilde residência de quatro quartos, 24 beliches e duas caixas de som JBL que “toram o pau na rádio Gospel” no centro de Curitiba, Dona Cacau passou a comercializar alfajores caseiros. Estes surgiram como forma de arrecadar fundos para manter o Esperança em pé e seguir auxiliando aqueles que dele dependem, morando lá ou não.
Os dependentes químicos, que antes levavam mais de um dia para negociar todas as mercadorias de um universo desalfajorizado, passaram a voltar para o Esperança com suas cestas vazias ainda na hora do almoço, tendo comercializado todos os doces em questão de poucas horas. E os compradores – antes estudantes com consciência pesada, agora clientes assíduos de demografia ampla – passaram a perguntar por mais. A pedir mais. A demandar mais. Os alfajores da Dona Cacau eram o novo unicórnio da cidade.
No radar da Operação AlfaJato
Havia um entrave: algo de mágico e intangível acompanha as mãos de Dona Cacau. Ninguém, absolutamente ninguém conseguiu reproduzir a qualidade de seu alfajor, o que limitou a quantidade de doces produzidos, além de irritar os nóias da livre iniciativa, que, pensando não ser impossível, foram lá e erraram a receita. As consequências foram nefastas à região central de Curitiba. Aqueles mais dedicados perceberam que só havia uma maneira de garantir contato direto com os alfajores, e essa maneira exigia manter-se próximo a sua produção, mais especificamente num dos quartos (ou no porão) da casa de reabilitação Esperança. Dona Cacau começou a receber estranhas ameaças por WhatsApp e a ter tuítes de 2011 devassados. “Eu falei que mulher merece apanhar num contexto beeeem diferente desse que tão dizendo”, alegou.
Surgiram casos como os de Leandro Paçoca, 23, e Camila Papaya, 38 (nomes fictícios). Ele, fundador de uma startup que negocia startups com outras startups; ela, investidora credenciada por uma investidora maior. Ao terem acesso negado ao Lar Esperança, ambos – estudiosos de logística e especialistas em flutuações de mercado – arriscaram a própria vida para cortar o elemento intermediário. Indivíduos antes tocados pelo marasmo de um cotidiano livre de perigo saltaram no coração das trevas para, por meio da internação, ter acesso à joia. De cada especialista em Excel da cidade parecia emergir um Robert Duvall queimando crianças vietnamitas.
A lata se tornou a melhor amiga de Paçoca e de Papaya, que nunca haviam experimentado crack, mas podiam ser vistos em frente ao Esperança todos os dias a partir das 13h30, horário em que Dona Cacau chegava do almoço. Eles foram acolhidos sem maiores suspeitas – até que os alfajores começaram a sumir, logo pela manhã, e Paçoca e Papaya acabaram internados, agora no Hospital do Cajuru, para limpeza gástrica. Acabou-se o que era doce. Doce, afinal, é a guerra para quem não anda nela. A boca doce leva a cabaça ao engenho e o dono à cadeia. A essa altura estamos listando provérbios sem critério algum.
Em questão de semanas, doações, patrocínios e raves beneficentes foram oferecidas ao Esperança, que fortificou o esquema de segurança sobre a confecção dos alfajores, mas ainda não conseguiu aumentar substancialmente sua produção, mesmo com o vigilante Arbusto Núñez trabalhando em turnos dobrados. Isso disparou o preço daqueles pedaços de nuvem em forma de chocolate e ligou o alerta da polícia, que paralelamente via o consumo de crack e de cocaína crescer em quantidades alarmantes. “Não se testemunhava um aumento tão súbito do consumo de ilícitos em Curitiba desde o fenômeno Bill no Coxa”, contou o delegado Guilherme Falcão.
Deixai todo o Esperança, vós que chapais
Com o caos instaurado, verdadeiros figurantes de Madrugada dos Mortos passaram a circundar o Lar Esperança. O espaço, com capacidade máxima de 32 internados, recebia mais de 100 pessoas, cada qual oferecendo um serviço em troca de alfajor. Um consórcio de nóias chegou a sugerir em voz alta a produção de crack dentro do Lar Esperança, tudo controlado pela Anvisa e com papel celofane de boa procedência. Dona Cacau admite ter estranhado o alto volume de “presepeiros, sujismundos e fãs de Clube da Luta”, mas defende não ter participado de qualquer iniciativa que sobrepusesse a mera reabilitação. “Às 19h eu ia para casa e pronto”.
A superlotação do espaço começou a gerar problemas logo que Aninha Bate-Bate, conhecida por emprestar carteiras alheias, foi obrigada a dormir ao lado da porta de acesso ao refrigerador de barras de chocolate. Por volta das 3h30 de uma quinta-feira de “larica master”, conforme definiu Aninha, ela decidiu arrombar a porta do controle de estoque e “conferir como estavam as massas pré-prontas de Luiza Cacau”.
Qual foi a surpresa de Aninha ao encontrar mais seis colegas nóias, todos tentando literalmente roer o refrigerador trancado, que somente abria com um código de seis letras. “Não eram homens, não eram ratos, eram… alfaraptors”, arriscou Aninha, babando um pouco e forçando o sotaque carioca ao relembrar os tempos em que foi clandestina em Miami. O princípio de insanidade obrigou a proprietária a desenvolver um bunker para esconder suas massas de alfajor, com entrada definida por exame óptico: quem aparentava nóia de doce era barrado pelos capangas de Arbusto Núñez, promovido a gerente-geral da equipe de segurança do Lar Esperança.
Por um curto período, o cerco às massas de alfajor melhorou o ritmo de produção. Contudo, a repentina paixão entre Aninha e Nu, como Aninha gostava de chamá-lo, retornou o empreendimento de Luíza à estaca de pensar em uma nova estaca. Fornadas inteiras de alfajor sumiam antes mesmo de sair do bunker. Com as dificuldades de atender aos acionistas que compraram cotas antecipadas do doce em euros, Dona Cacau teve de tomar uma atitude, e Núñez foi despedido; Aninha acabou reincorporada à Ponte do Capanema, desistindo de processar Luíza por uma dúzia de alfajores fresquinhos.
Vendidos a R$400 no câmbio doce, Aninha Bate-Bate conseguiu, enfim, planejar o casamento com Núñez sob a condição de “nunca mais se pronunciar sobre a experiência Lar Esperança” para a imprensa. Todavia, a informação de que havia outros fornecedores do alfajor de Dona Cacau trouxe uma nova perspectiva e, diferentemente do que assevera um coach, uma nova perspectiva foi o princípio do fim.
Traficantes de drogas comuns estranharam a entrada de um suposto novo entorpecente no mercado e, desconfiados, buscaram contato com Dona Cacau, cujo telefone já havia sido grampeado. No primeiro diálogo entre um fornecedor de substâncias e a fundadora do Esperança – a qual alega não ter entendido absolutamente nada –, a Polícia agiu. Em 2 de janeiro de 2020, Luiza Cacau foi presa por tráfico de drogas e assédio moral – Túlio Dateko registrou um Boletim de Ocorrência em que relatou, entre o constrangimento e o orgulho, ter sido obrigado a ingerir seis alfajores pelo esfíncter.
Cacau é apontada como líder de um esquema tão brilhante como sutil, o qual não movimentava dinheiro, não deixava rastros e não descumpria leis, e que ainda assim influenciou diretamente o tráfico em escala regional. Segundo estimativas da PM, apenas o consumo de crack na região central cresceu cerca de 55% – até latas comemorativas com o rosto de Dona Cacau foram vistas ao longo do petit-pavè curitibano. Uma petição online defende que o Monumento do Cavalo Babão, do Centro de Curitiba, seja rebatizado para Cavalo Latão e que, em vez de água-água, ele despeje apenas “água”. Ainda de acordo com a PM, “esse alfajor é realmente do c*r*lh*”. Luiza Cacau será julgada em fevereiro.