Protetor boçal, o objeto que poderia ter sido
A brilhante invenção de Sir Theodore Lescott, homem à frente de sua espécie.
Nesta newsletter, resgatamos textos publicados no Jornal RelevO e já devidamente esquecidos. Dessa vez, trazemos um verbete da edição especial “fake news”, impressa em novembro de 2017.
Bom dia, assinante e colaborador(a) do Jornal RelevO.
Hoje, trazemos mais uma amostra daquilo que chamamos de humor; e nossos amigos, de “li sim ficou bem legal parabéns”. O texto abaixo consta na edição especial “fake news”, disponível neste link.
O RelevO ainda aguarda a startup disruptiva foguete-não-tem-ré que há de tirar o protetor boçal do papel. Enquanto isso, registramos nosso respeito à figura de Sir Theodore Lescott.
Protetor boçal, o objeto que poderia ter sido
Muitos de vocês certamente reconhecem um protetor bucal, utilizado principalmente por lutadores, ortodontistas e possíveis praticantes de hábitos sexuais pouco comentados em voz alta. Infelizmente, coube à história a cruel relegação de seu primo mais velho, o protetor boçal. De funcionamento muito semelhante ao das peças de silicone e espuma vinílica acetinada que avistamos hoje, o protetor boçal consistia em inserir na boca um dispositivo de objetivo simples e alheio a ambiguidades: impedir que seu usuário proferisse asneiras.
Se o protetor bucal surgiu no início do século XX como resposta às desditosas lesões do boxe, a primeira tentativa de formalizar o protetor boçal havia saído do papel décadas antes disso, em 1855, por meio das quixotescas empreitadas do astrônomo astrologista, geógrafo ocultista e numerólogo jornalista Sir Theodore Lescott. Inspirado pelos romances de Charles Dickens – nas palavras de Lescott, “as obras me despertaram tamanho tédio a ponto de, pela primeira vez na vida, refletir melancolicamente” –, o polímata logo testou em sua fábrica copiosos métodos em busca de exequibilidade para o produto.
Para tanto, diversos materiais foram aplicados (em diversas crianças, as quais correspondiam a uma vasta parcela da mão de obra local). Sua primeira ideia consistia em pressionar os dentes assim que o protetor boçal detectasse asneiras produzidas pelo usuário. Entretanto, no planejamento se identificavam dois grandes problemas. Um deles era produzir uma máquina tão pequena e tão sofisticada a ponto de ler analogicamente uma potencial asneira para então reagir à sua concretização. A outra, mais complicada, era encontrar consumidores que em plena Inglaterra Vitoriana já não tivessem perdido os dentes.
Ainda que Sir Theo argumente ter desenvolvido uma fórmula para identificar asneiras com margem de erro irrisória, só seria possível concretizá-la em uma máquina a vapor de 50 m², o que inviabilizaria a distribuição do produto – embora interessasse por sacrificar mais algumas crianças no meio do caminho. De tal forma, retomando os postulados de seu conterrâneo Guilherme de Ockham, Lescott visou à simplificação: para o protetor boçal funcionar, bastaria que este destituísse de seus usuários a praticidade da fala, tendo eles dentes ou não. “One must remove it in order to use it”, no manifesto original. Abandonando fórmulas complexas, Lescott se ocupou de construir um aparelho em que convergissem dois eixos: gerar desconforto suficiente para forçar o silêncio e, ao mesmo tempo, apresentar-se confortável a ponto de o uso cotidiano não fomentar lesões e demais empecilhos. “Ninguém estará impossibilitado de falar, tampouco de ouvir. Aquele que carrega consigo o protetor boçal, no entanto, haverá de proferir palavras apenas quando sentir a mais absoluta confirmação de que essas valerão a pena não só para si, mas também para seus receptores”. O inventor precisava capturar a essência da preguiça. Sem saber que era impossível, Sir Theodore Lescott confirmou que era ao menos bastante improvável.
Engana-se, todavia, quem credita a Lescott a concepção do protetor boçal. Isso porque John Locke, quando escrevia suas asneiras sobre o funcionamento da mente humana, havia projetado um acessório muito semelhante ao protetor, na década de 1680. Todo um capítulo do rascunho original de “Ensaio acerca do Entendimento Humano” se dedicava ao esboço de um utensílio que buscasse a suspensão vocálica de “afirmações levianas, opiniões visivelmente desprovidas de alicerces e demais declarações cujo emissor não consegue se remover do centro do planeta”. O capítulo foi lamentavelmente perdido logo após Locke retornar da Holanda, em 1688. Ao ser perseguido por um faminto cão bloodhound, o teórico descartou o excerto pelo qual reservava menor afeto, distraindo o animal, porém castrando a humanidade de tão impactante hipótese. Sir Theodore Lescott não só sabia da história como várias vezes deixou de contá-la, portando ele mesmo um protetor boçal na alvorada de suas palestras mais populares.
O sonho da invenção, afinal, durou pouco. Em questão de um ano, Lescott já havia garantido ao público que seu objeto funcionava. Alguns grupos aderiram à novidade, embora o protetor boçal tenha custado ao inventor toda a sua credibilidade no círculo de astrologia. Frustrado, investiu grande parte de seus bens em divulgação, movimento que se revelou um passo em falso, dado o alto índice de analfabetismo entre possíveis clientes, aliado ao desinteresse dos diplomados em calar a boca. Seu patrimônio se pôs ainda mais careca no ano seguinte, quando um marinheiro ébrio se afogou com o protetor boçal e, cometendo a peripécia de sobreviver, processou Sir Theo. O custo do processo, somado ao prejuízo das pouco vendidas peças, fez com que ele passasse por maus bocados. Foi assim que a produção do protetor boçal cessou definitivamente em 1858. Absolutamente desiludido, o inglês aprendeu da pior forma que, como Wanessa Camargo e o palm top, algumas coisas simplesmente não pegam.
Houve, sim, tentativas de resgatar o objeto. Substituindo o modo analógico pelo digital, a sul-coreana Samsung fez de tudo para aplicar um novo protetor boçal em 1975, controlado por meio de um microchip. Infelizmente, conversas sobre o fim da Guerra do Vietnã, bem como tensões elevadas da Guerra Fria, impediram que os mais variados círculos sociais contivessem o entusiasmo em expor suas respectivas tolices em voz alta. Em todos os cantos do mundo, brotaram o boicote mercadológico e o desprezo por parte da classe política, de cuja sobrevivência dependia o mau funcionamento do protetor boçal. De tamanha simplicidade efluíram as conclusões mais cristalinas para a baixa adesão histórica à ferramenta: não era de interesse dos poderosos que o povo deixasse de falar merda. Também não era de interesse do povo que o povo deixasse de falar merda. A verdade é que o silêncio nunca foi muito procurado. Tendo percebido isso há mais de um século, Sir Theodore Lescott engoliu dois quilos de carvão e se matou em 1862, frutificando o primeiro suicídio steampunk da história. A interpretação otimista lhe confirma um lugar no rol dos homens à frente de seu tempo; a pessimista, no de homens à frente de sua espécie. Em honra dele – e de todas as asneiras repensadas e cautelosamente engavetadas –, dedicamos o dia de hoje.
REFERÊNCIAS
KNIGHT, Henry. Mouthpiece for cunts: the oral history of Sir Theodore Lescott. Oxford University Press, 1977.
___________. Sir Theo: the bio. Oxford University Press, 1981.
KORRO, Pronde. De Mainardi a Amorim: um mapa da asneira brasileira no século XXI. Cosac Naify, 2018.
ADU, Freddy. Nescafé Ice e outros talentos adormecidos. Trad. Laura Ipsom. Companhia das Letras, 2014.
CARTER, Miroslav. 1001 invenções para não reinventar antes de morrer. Sextante, 2012.