TOVI, primeira torcida organizada a defender que "é só futebol"
“Tiro, porrada e… videogame” e “não é só saneamento básico” são algumas das campanhas previstas pela instituição. Reportagem do RelevO foi conferir.
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TOVI, primeira torcida organizada a defender que “é só futebol”
“Tiro, porrada e… videogame” e “não é só saneamento básico” são algumas das campanhas previstas pela instituição. Reportagem do RelevO foi conferir de uma distância segura os desdobramentos desta história.
O Clube Atlético Sintropense nunca esteve tão próximo do topo. Invicto na segunda divisão do Campeonato Capixaba, a equipe de Vitória precisa de apenas um ponto nas últimas quatro rodadas para confirmar sua ascensão à elite do estado (ou algo semelhante). Um feito e tanto para uma instituição que largou o semiamadorismo há apenas dois anos, com o fim da gestão de Pepeco. O folclórico ex-jogador decidiu parar de morar dentro de uma garrafa para, quem diria, trabalhar na comissão técnica do Al-Gharafa, no Catar.
Tamanha propulsão se deve a um alinhamento atípico entre diretoria e adeptos: sua torcida mais ou menos fiel, a Torcida Organizada Vida Independente (TOVI), intitula-se o primeiro coletivo de torcedores da história do balípodo a defender de forma irredutível que futebol é, quem diria, tão somente futebol. O que isso significa? Conversamos com Andrigo, o popular “Facada”, líder da instituição.
“A TOVI começou espontaneamente porque eu e uma dúzia de torcedores tínhamos uma ideia em comum: esse papo de ‘não é só futebol’ já encheu o saco. Todo mundo já entendeu, p*rr*”, contextualiza um intenso Facada. “Não nego meu passado. Infelizmente, o apelido pegou. Já fui jovem e inconsequente. Fora daqui ninguém me chama de Facada: sou Andrigo Soares, gerente de TI de uma resseguradora listada na Bolsa. Mas isso a imprensa não repercute”, sentencia. O repórter do Jornal pergunta sobre as ações da Vale (VALE3). “Você diz a Desportiva de 1996?”.
Aparentemente, tudo começou quando muitos integrantes da antiga facção completaram 35 anos e começaram a ter lombalgia, mas Andrigo nos traz outro viés. “As torcidas se digladiam por muito pouco. Essa relação de dominância – ‘a gente torce mais que vocês’ – é tão besta. A TOVI bate no peito e responde de boca cheia: ‘sim, vocês amam mais seus clubes do que nós amamos o nosso. Mas quantos integrantes da sua torcida amam a esposa e os filhos?’. E vou te dizer: aí só se ouve silêncio”, complementa o líder da TOVI. “Acreditamos ser a primeira torcida organizada do mundo que realmente não esquenta a cabeça após o jogo: perder de 3 a 0 pode ser desgastante, mas chato mesmo é encontrar um chefe injusto na segunda-feira ou não querer voltar para casa por conta de problemas familiares… Ou voltar depois do horário combinado…”, derrama misteriosamente Andrigo enquanto apaga mensagens no celular. “Mas apago só pra mim: é o esquema tático que melhor funciona contra os ataques em massa da Claudinha, hahahaha”.
Na sede da TOVI, na Praia do Canto, entre panfletos e classificados, a estrutura é de uma grande e saudável sala de convivência, com muitos puffs, chá de camomila livre e o looping eterno de um DVD do Natiruts na tevê de 35 polegadas. Entre os requisitos para adesão ao grupo, consta doar sangue periodicamente, acompanhar o clube do livro da torcida e não ter nenhuma tatuagem que faça referência ao time. “Eu mesmo tive que cobrir o escudo do Sintropense com uma ampulheta – ficou da hora”, conta Mateus Favero, aproveitando a oportunidade para tirar a camiseta e mostrar a arte do peitoral direito, antes de palavrear detalhes específicos sobre a referência estética de cada uma de suas 23 tatuagens. Nosso repórter também mostrou suas duas tatuagens do Relevito e uma flor de lótus que começa no cóccix – “é a flor de lottix”, ri, desacompanhado.
Parte do sucesso do Sintropense dentro de campo se deve a uma contratação inusitada: o meio-campista chinês “Feng Shui”, emprestado acidentalmente pelo Nei Mongol Zhongyou (内蒙古中优). A equipe oriental visava oferecê-lo ao Vitória da Bahia como uma estratégia de marketing no Nordeste brasileiro, mas, desconhecedor de algumas camadas de representatividade esportiva, acabou disponibilizando o atleta a todas as agremiações de Vitória-ES. Atento, o diretor de futebol Luigi Semprassino foi o primeiro a enxergar potencial na tratativa.
Tido como peça-chave nos onze do treinador Samuca, conhecido pelo uso extenso da mão de obra asiática “mais acessível” em outras esferas da atividade econômica, Shui é líder de desarmes e de assistências no Capixabão – isso enquanto domina apenas as frases “passa pra mim”, “chuta pro gol” e “não é gonorreia”. Feng Shui, cujo nome de batismo, Zhang Jie, foi alterado também por questões mercadológicas, virou Shuizinho e caiu nas graças da TOVI (e, estranhamente, de um grupo de taxidermistas das Filipinas, mas preferimos não especular sobre isso na reportagem por falta de dados mais concretos ou por não sabermos se Filipinas é um país ou uma ilha. O repórter, outro estagiário malpago e indisposto da geração Z, também não sabe diferenciar Filipinas de filipetas – principalmente por nunca ter tocado em uma. Filipeta, no caso).
Luigi Semprassino, por sinal, é um dos maiores aliados da TOVI. “Confesso que a situação fica até estranha. Trabalhei dois meses no Vasco e quebraram todos os vidros do meu carro porque contratei um lateral-direito canhoto. E pra ser justo, a verdade é que o Celsinho não era canhoto nem destro. Como eu ia saber?”, defende-se. “Aqui eu venho trabalhar com um sorriso no rosto”, afirmou, sorrindo com algum atraso, como se tivesse de explicar o simbolismo. “Às vezes, até sinto falta da pressão…”. Segundo o único opositor da torcida TOVI no Espírito Santo, Charlinho da 7, que considera a TOVI – numa tradução livre – “um bando de corno chupa-c*”, em um tuíte publicado às 4h57 e já apagado, Luigi teria visto o fantasma de Eurico Miranda no vestiário do Sintropense e “tocado a si mesmo de maneira suspeita” (o que, na verdade, é uma tradução nossa para “esse b*st* desse Luisi [sic] toco uma vendo fantasma do Eurico seu velho p*t* filho da m*rd* eu vo te apaga”).
Shuizinho já tem despertado a atenção de olheiros do mundo todo: a diretoria – hoje com estrutura de SAF – calcula fazer sua primeira grande venda nessa negociação, alavancando o Sintropense para os próximos anos, não sem antes lançar a campanha “O melhor do Oiapoque ao Shui”. Quem está rindo à toa é o CEO do clube, Charles Rindatoa (“na verdade vem do francês Hindatoi, ãn-da-to-á’” – ele educadamente solicitou que explicássemos).
Enquanto o elenco se prepara para a ascensão no Campeonato Capixaba, a torcida aquece a garganta com novos cantos. Entre eles, destacam-se “Acabou a paz; eu não vou viajar no inverno!”; “Ôr ôr ôr, queremos doador!”; e “Mil gols, mil gols, mil gols, mil gols, mil gols! – tanto faz, tanto faz!, o meu filho se formou!”. As músicas são escolhidas por votação e não podem conter mensagens discriminatórias ou que incitem violência – “nem mesmo contra carioca ou argentino”. A única orientação, segundo a página oficial da torcida (“apenas no Threads, que é menos agressivo”), é evitar conversar muito tempo com corintianos. “Nos baseamos no livro A arte da guerra para torcedores, do nosso confrade Julinho Pão na Chapa”.
“A gente pode ser um pouco sem graça, mas ao menos estimula o uso de chuteira colorida – esse papo de futebol raiz também já encheu o saco”, comenta o tesoureiro da TOVI, Marcos Planilla, enquanto projeta o filme 2001: Uma Odisseia no Espaço na sede da torcida. “A cultura é o alimento da alma. Se os aliens visitassem a Terra, o que eles aprenderiam conosco? O que levariam daqui? Será que vale perder a cabeça por conta de um empate cedido depois de sair ganhando de dois a zero?”, medita ele, que se empolga com o assunto “aliens” e toma bons quarenta minutos do repórter com teorias não requisitadas.
Os mais jovens da torcida se inspiram em figuras como Facada e Planilla (“exceto quando ele entra naquela noia de ETs”). Luizinho “Cano Grosso” Santos, o CG, que largou a pichação e hoje se dedica à pintura abstrata – “cara, isso tira os demônios do meu corpo” –, associou-se à TOVI há um ano e já se considera um novo indivíduo.
CG promete uma pintura ao RelevO e pede que aguardemos sua próxima obra. Entre uma música do Natiruts e outra música do Natiruts, ele se concentra com pincéis, rolos e espátulas em uma tela branca cedida pela papelaria local – também patrocinadora das mangas da camisa do Sintropense. Depois de 84 minutos de dedicação total, constatamos que o resultado não chama atenção e não agradaria a críticos de arte, tampouco ao tipo de pessoa que compra caricaturas no centro da cidade ou telas em centros acadêmicos. Seus demônios são desinteressantes, mas ele parece um cara legal. No domingo, contra o lanterna Locomotiva Circular, o Sintropense precisará de apenas um empate para confirmar a subida à primeira divisão – e, principalmente, o início da campanha de arrecadação de chocolates para abrigos locais na Páscoa.