Tribaltech 2018: nuvens sob o galpão
Só fui em duas TribalTech. As duas últimas TribalTech.
Por Mateus Ribeirete, no Jornal RelevO de outubro de 2018.
Só fui em duas TribalTech. As duas últimas TribalTech. Isso não me qualifica como um especialista para descrever o evento, que atingiu sua honrosa 24ª edição em 22 de setembro. O festival existe desde 2004: sou, portanto, um novato.
A essa altura, com o nome já bem consolidado, é fácil colher histórias de participantes sem ir muito longe. Há aqueles que não perdem uma; há aqueles que transformaram a TribalTech em um ritual; há aqueles que se cansaram e preferem não ir; há aqueles que detestam, mas continuam indo.
Sua mais recente edição, Enlighten, ocorreu na Usina5, no Prado Velho (um bairro de Curitiba, para nossos leitores nacionais). A edição do ano passado também. A Usina5 consiste em uma fábrica abandonada da Açúcar Diana. Esse bairro abrigava algumas fábricas antes de Curitiba ter a Cidade Industrial à sua disposição e empurrar poluição para cidades vizinhas.
Os esqueletos dessas fábricas permanecem, e assim são compostos ambientes otimizados para a música eletrônica. Durante a Copa do Mundo, por exemplo, a Budweiser decorou outra fábrica abandonada no Rebouças, um bairro próximo. A Usina5 é espaçosa – inteira, tem 60 mil m² – e vem recebendo atividades desde o ano passado. A última Oktoberfest foi lá.
Dessa vez, utilizando uma maior área em relação à última TribalTech (Escape), nele foram montados sete palcos mais um secreto. A entrada, que na última edição emperrou muito, foi redirecionada e agora fluía bem. Constatei a evolução ao passar pela revista e ouvir as caixas de som mais de perto às 18 horas e alguma coisa. A festa havia começado às 14h.
Trafeguei por todos os palcos. Naturalmente, cada um seguia uma linha. Abusando das caricaturas, pode-se dividi-los por arquétipos, como o 3DTrip, único ao ar livre, dos entusiastas do trance, psy e prog; o Timetech, dos pedantes que louvam minimal romeno; o Supercool, mais suave e propenso a um house alegre. O principal não era nenhum desses três. O primeiro palco em que parei também não. Este, o menos eletrônico, receberia apenas três atrações – shows – ao longo da noite: Planet Hemp, Karol Conka e Mano Brown. Não abri mão da primeira delas.
Tenho todos os CDs do Planet Hemp, comprados na pré-adolescência. E os primeiros de Marcelo D2, Black Alien e BNegão & Os Seletores de Frequência. Antes de comprar este último (com a Revista OutraCoisa), encontrei o e-mail do BNegão em algum beco do universo pré-ADSL e perguntei a ele se era seguro… comprar o CD dele pela internet. Eu tinha 12 anos. Ele respondeu afirmativamente com notável educação, então ainda o respeito por isso. Também me lembro de ver um show dos Seletores antes de uma prova de matemática em 2008.
Enfim, o Planet Hemp me traz uma enorme memória afetiva – e eu sequer gosto de maconha. Para surpresa de ninguém, o show foi excelente: poucas bandas brasileiras dispõem de tanta verve. A bateria é energética, o baixo tem groove, a guitarra é puro wah-wah e você ainda recebe Marcelo D2 e BNegão comandando o espetáculo.
Não assisti ao final do show, pois me movi para o Timetech para conferir Sammy Dee às 20h. Havia espaço para se locomover. A iluminação não era lá muito surpreendente. As laterais, cantos VIP para ingressos mais caros e/ou convidados muito importantes (eu), felizmente ocupavam pouco da área. A decoração oferecia uma grade em frente ao DJ, ideia simples, porém bem executada naquele galpão cinzento cujas duas entradas precedidas por grandes escadas desafiavam os menos sóbrios ao longo da noite.
Em se tratando de música com poucos elementos, o set deste alemão com cara de contador exigiu concentração. Os primeiros noventa minutos foram mais monotonais – uma batida infinita, hipnótica e um ou outro detalhe sutil. Os sessenta minutos finais cresceram e ganharam melodia: a última meia hora foi fantástica. Meu corpo acelerou.
Depois dele, Vera, também alemã, deu sequência, demonstrando algum incômodo com o sistema de som. Aproveitei para conferir o começo de Mano Brown (Boogie Naipe), uma banda numerosa, uniformizada e repleta de metais. Carismático – e carregando uma bengala –, Mano Brown os conduzia. Uma belíssima apresentação cuja metade final não vi.
Sabendo que voltaria ao Timetech, explorei os outros palcos. No Supercool, Medlar comandava a festa, mas eu apenas conseguia prestar atenção no boneco gigante ao fundo do palco. Articulado (em cotovelos, coxas, joelhos, pés e mãos), este cabeçudo de mais de três metros dançava conforme seus fios eram puxados pela plateia. O boneco merece uma descrição melhor, mas esta é vaga o suficiente para indicar que o negócio era realmente muito legal.
O palco aberto dispunha dos efeitos visuais mais cativantes (afinal, ninguém ganha o nome “3DTrip” à toa). Fábio Leal liberava um psy cósmico que frequentemente me lembrava da abertura de Doctor Who. Fiquei cerca de meia hora ali e voltei ao Timetech, onde o uruguaio Nicolas Lutz começaria. Antes disso, encontrei o palco secreto.
Uma dúzia de metros quadrados para uma dúzia de pessoas, anunciada pela entrada afunilada, discreta, próxima aos banheiros químicos, concretizou um belo acerto. Era íntimo e honesto; um espacinho abandonado dentro de um festival montado dentro de um espação abandonado. Nesse iôiô de hiper-realidade, aqueles que passaram mais tempo lá não se arrependeram. Gostaria de ter visto Renato Cohen. Perdi.
A estrutura da Usina5 oferece aquela atmosfera charmosa (porque irreplicável) do abandono. Um refeitório abandonado; uma piscina abandonada; um galpão abandonado – espaços degradados naturalmente e agora revividos apenas para o entretenimento de quem quer ouvir música alta. Derrida talvez chamasse esse encontro com fantasmas de hauntologia. O que não diz nada, porque Derrida era um filho de uma puta de um ilegível.
Apesar de cansado – e de, a essa altura, já ter urinado cerca de dez vezes os vidros de 15 reais de Itaipava (…) –, eu estava gostando de Nicolas Lutz. No entanto, uma nuvem negra atingiu a TribalTech. O que é parte metáfora, parte literal: o aeroporto de Curitiba não liberaria a aterrissagem dos voos fretados de Len Faki e Dubfire (SP, festival XXXperience) e Modeselektor (RJ), as estrelas da noite.
Some isso ao fato de que a última atração do 3DTrip, que já encerraria mais cedo, foi cancelada. E que Guy Gerber, outro headliner, havia cancelado no dia anterior, alegando ter perdido os documentos antes de viajar. E que SIT, uma das atrações mais empolgantes, havia cancelado na semana anterior. Pronto: parecia a convulsão do Ronaldo na véspera da final da Copa de 98.
A informação correu rapidamente. Os palcos foram rearranjados. Parasole, que tocaria no Timetech, foi deslocado para o principal, no qual Ben Klock se estendia. Assim como o brasileiro Gabe, ele iria para São Paulo e também teve o voo cancelado.
Compreendi a expressão bad vibe. O som abaixou -seriam as reclamações locais? -, as pessoas se perderam, as reclamações começaram. Especialistas em aviação e meteorologia surgiram de banheiros químicos. Fui atrás do Parasole. O palco principal era longo demais e a pista VIP ocupava um espaço considerável. Do fundo não se ouvia tudo; à frente era difícil chegar.
Não insisti e passei meus minutos finais no Supercool, com o americano Fred P, lamentando a sequência azarada de um evento estruturado e organizado – muito mais do que no ano passado – a 15 minutos da minha casa. Não tenho argumentos sólidos para classificar como incompetência. A Itaipava a 15 reais é um pecado menos perdoável, embora talvez menos lamentável, do que a cagada aeronáutica em um procedimento corriqueiro neste contexto – isto é, o fato de que DJs fazem múltiplas apresentações por noite e se deslocam em cima da hora.
Com essa praxe, todos saem ganhando: o DJ, o evento apto a escalá-lo e o fã interessado no evento. Do ponto de vista logístico, apresenta riscos. Ninguém quer vivenciar a mutação do risco em problema. Muito menos o fã, parte livre de culpa, cuja frustração é legítima após investir dinheiro, tempo e expectativa. Enfim, as reclamações sobre o som me parecem mais justas.
É natural que as pessoas daqui tenham uma relação intensa, positiva ou negativa, com a TribalTech. Isso acontece em qualquer cenário de qualquer ação cujos participantes estão próximos dos organizadores. Outra eterna discussão corresponde à possível perda do valor artístico em prol do valor comercial, corolário temático que certamente não desenvolverei. Que o festival paranaense seja comparado com similares maiores, em todo o caso, é um ponto a ser respeitado.
A TribalTech, hoje, claramente acolhe bem o participante casual, propenso a ver naquilo a experiência de uma balada melhor do que a noitada média, o que talvez afaste (e, com sua razão, incomode) o público mais apegado à música eletrônica enquanto identificação pessoal. Nesse vórtice complexo, entusiastas se afastam; curiosos se aproximam; gentrificadores reclamam de gentrificação; todo mundo está certo; todo mundo está errado e na realidade objetiva eu preciso tomar banho e dormir.
Entrei em um táxi. Cheguei em casa, urinei pela décima terceira vez e encontrei na água quente do chuveiro a minha redenção irreplicável. Dormi bem. Almocei o fast food mais porco ao meu alcance. A vida seguiu, ou tem seguido.