Governo Federal promove evento de troca de estado de nascença para brasileiros
Ministério do Turismo prevê “Feirão do Ex-tado” para agosto.
Nesta newsletter, resgatamos textos publicados no Jornal RelevO e já devidamente esquecidos. Dessa vez, trazemos as centrais da edição de maio de 2023.
Governo Federal promove evento de troca de estado de nascença para brasileiros
Compatriotas insatisfeitos agora poderão negociar entre si sob a tutela do Otrane. Para promover o rebatismo estadual, Ministério do Turismo prevê “Feirão do Ex-tado” para agosto.
Edson Borges, 34, muito fã de Dorival Caymmi – “e do Dorival Júnior, acrescenta aí” –, tem um problema: nasceu em Santa Catarina. Mais especificamente em Garuva, onde o trânsito é muito complicado nos feriados. Seu sonho? Ser baiano. Mas não apenas na prática. Edson quer nascer na Bahia. Atento a esse tipo de demanda, o Governo Federal, por meio do Ministério do Turismo, criou o Otrane, o Órgão de Transição de Estado, que permitirá ao cidadão brasileiro com as contas em dia e o título de eleitor regularizado alterar seu estado de nascimento.
Borges não está sozinho em sua angústia. Nas redes sociais – o único ambiente em que nos dispusemos a pesquisar, pois ninguém bancou o deslocamento do RelevO, e, bom, jornalismo não é basicamente isso mesmo? –, as reações são efusivas, alternando entre uma bela leitura de espírito do tempo por parte do Governo Federal a fancams de deputados com trilha sonora de K-pop. Vejamos em detalhes.
Conhecemos Lucila Diamante, ou @lcldmnt, 36, “empreendedora raiz” (palavras dela; não questionamos). Carioca, ela quer ser mineira porque odeia praia e “porque mineiro é tudo meio trouxa mesmo; eu adoro”. Diamante é fã de Skank: “achava que era uma forma de droga. Fui ouvir, no começo achei que era droga mesmo, mas, 30 anos depois, posso dizer que assimilei e uso duas vezes por semana”. Também interagimos com Carlo Matsunaga, 29, herdeiro (“basicamente”). O paranaense quer se naturalizar cidadão de Balneário Camboriú, mas aceita – “com muita humildade” – começar por Itajaí, “tipo jogador que sai do futsal pro futebol de campo”. Ele até torce para o promissor Hercílio Luz, “fiz sócio e tudo”. Infelizmente, há menos de um mês, na semi do Catarinense, Matsunaga se exaltou em um open bar e nos enviou duas fotografias do estado atual de seu pênis, uma diferente da outra.
Insatisfeito com os nudes e sedento pela notícia, o RelevO buscou mais personagens, mais fontes, mais hard news. Contudo, encontrou apenas o enfadonho Benjamin Bruno, entusiasta da banda Paramore (apesar dos 40 anos). “Sempre me senti no corpo territorial errado”. Natural de Taguatinga, Bruno gostaria de regredir seu nascimento até se tornar capixaba. “Eu aceitaria morrer no meu primeiro instante de vida se fosse atrás do campo da Desportiva, em Cariacica”. O sociólogo Tiago Tignozzo define o fenômeno como “state fluid” – e se identifica com ele. “Goiano, eu? Só na certidão, e por enquanto. Um abraço ao pessoal do Otrane; baita trabalho do Ministério do Turismo”.
O gaúcho Antônio Girão, mais conhecido como Porco Guaiaca, por sua vez, tem passado por um problema sério de transição: nenhum estado aceita a sua busca por uma nova regionalidade. No início, Girão tentou se filiar ao Paraná. Contudo, o governo estadual, temendo uma migração desproporcional de CTGs e de torcedores de Inter e de Grêmio, barrou a filiação sob o argumento peremptório de “nem fodendo”, repetindo a velha máxima de que Santa Catarina só existe para separar o RS do restante do país. “É uma questão de luta por autonomia”, declarou o governo em nota oficial. Fontes consultadas pelo Jornal, que exigiram off, alegam que o governador entende que o design dos mascotes separatistas do Rio Grande do Sul pode não ornar com os pontos turísticos da capital.
OS TRÂMITES D’OTRANE
De acordo com o comunicado divulgado pelo Ministério do Turismo, o processo será simples. Qualquer transação será regulamentada pelo Otrane, com pedidos protocolados pelo site <www.gov.br/otrane> mediante uma taxa de R$ 120. A iniciativa promete contribuir com os cofres públicos, desfocar a atenção de eventuais declarações presidenciais e até conter possíveis aumentos de combustível de 2023.
“Pra ser sincero, é um esquemaço para o Governo. Reparem, para o Governo, não do Governo. Não tem esquema nenhum aí, mas encontramos uma solução estupidamente elegante para arrecadar imposto”, reconhece Almeida Carrão, cotado para ser diretor do Otrane, mas escanteado após promover a inclusão do site do Disk Ingressos no rodapé da bandeira do Brasil. “Daria um pau na Lei Rouanet”, defende-se. A nomeação de Carrão ainda não está descartada.
Saindo do delírio e correndo em direção aos confins da jurisdição do DNIT, o sul-mato-grossense Wesley Pedro Paulo Bahia – “coisa foda do meu pai bêbado esse nome”–, é um caso raro de cidadão que não quer mudar de estado. “Bem, ninguém nem sabe onde fica meu estado no mapa. A verdade é que eu sempre quis ser sul-mato-grossense. Primeiro que eu não gosto de futebol, e aqui é um ótimo lugar para não ver futebol. Nunca precisei conversar com um corintiano ou flamenguista na vida. Segundo… Bem, não tenho um argumento melhor que esse (além de respeitar a Mata Atlântica)”, enfatiza.
A manauara Priscila Oliveira, que, durante a entrevista com Bahia (o estado, não o Wesley), passava de jangada na região, também foi consultada pela nossa equipe de reportagem. A jovem representante comercial de uma madeireira (e poeta parnasiana nas horas vagas, que acontece de serem várias) não veria problema algum em ser sergipana, “por exemplo”. “Só não quero ser paulista. Melhor: paulistano. Diadema parece ser legal”. Cansada da oscilação da internet em suas pescarias matinais, Priscila até cogitou mudar-se, mas sem a alteração formal de estado de nascença. “Acabei de lembrar que também não quero ser recifense”. A reportagem indagou: “mas você sabe que Recife é a cidade, né?”, recebendo como resposta a pergunta “e você sabe que é um cuzão, né?”. Ai.
AMEAÇA FEDERAL
O Otrane logo verificou a dificuldade mais básica da troca de estado de nascença: o brasileiro fanfarrão. Enquanto alguns sonhos simbólicos começam a se concretizar, fraudadores, oportunistas e embusteiros, como Cássio Vendetta, querem mesmo é fugir de suas obrigações familiares. “Esse vagabundo viaja o Brasil gastando o dinheiro dos filhos dele com puta”, alega Maria Cazadore. “Aí chega em casa falando gíria que aprendeu em bordel. Luquinha não para de cantar ‘roça roça em mim, roça roça em mim’…”, desabafa. Vendetta foi localizado pela nossa equipe de reportagem em um estabelecimento noturno de Corumbá, mas negou ser quem era, gritando “soy boliviano, soy boliviano”. Ele alega – com notável cara de pau – que não aliviará suas dores enquanto não se formalizar rondoniense, mas jamais deu entrada em processo algum.
Em outra via da vadiagem, o Ministério do Turismo afirma já ter recebido relatos de “cidadãos, não sabemos de onde, mas, convenhamos, muito provavelmente do Rio”, vendendo um suposto “acesso prime” com direito ao certificado de nascença de todas as unidades federativas do Brasil (e dos Estados Unidos).
Outro fracasso retumbante da política de rebatismo estadual foi a cearense Glorinha Copolla – “por causa da Sofia, óbvio”, que entrou com pedido junto ao Otrane para nascer em Lugar Nenhum. Isso mesmo. Citando Félix Guattari, Michel Foucault e o personagem Lula Molusco, a estudante de História promoveu a necessidade de desterritorializar o pensamento, sentenciando que “só quem aceita que nasce aceita que morre”. No mapa mental da estudante, Lugar Nenhum ficaria perto de Botucatu. Glorinha fez coro ao estudante Jorginho Guimba, que entrou com petição pública para o reconhecimento do estado gasoso como um local de nascimento. O Otrane prometeu verificar esses casos, “mas sem muita pressa”.
Também houve alguns problemas de ordem técnica, como o sergipano não identificado que, num deslize dos dedos, trocou Pará por Paraná em sua ficha de inscrição, dando-se conta apenas após receber seu certificado de boas-vindas à Terra do Pinhão. “E agora, bicho?”.
Portas se abrem, janelas se fecham e vice-versa. Algumas janelas também quebram. Outras portas emperram. Também é possível arrombá-las. Algumas janelas têm tela; algumas portas têm trava. O vento é outro elemento capaz de interferir em janelas e portas. Enfim. O brasileiro está pronto para escolher seu estado de nascença? Perguntamos a Edson Borges, aquele que citamos no início da reportagem e literalmente esquecemos ao longo dos demais parágrafos. Com o processo em mãos – já impresso, reconhecido em cartório, com QR Code e tudo –, Edson apresenta um semblante mais leve, contente. Acompanhado da esposa, Rafaela, ele cantarola: “Acontece que eu sou Baiano / Acontece que ela não é / Mas... tem um requebrado pro lado / Minha Nossa Senhora / Meu Senhor São José”. Ela revira os olhos. Edson percebe e complementa. “Ela é carioca / Ela é carioca / Basta o jeitinho dela andar…”. O brasileiro parece mais feliz, ou ao menos com uma nova distração.