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— Se eu lembro daquele bosta? É claro que lembro — respondi.
Por Bolívar Escobar, no Jornal RelevO de maio de 2017.
Não guardar mágoa, ou não guardar rancor, deve estar sempre entre os três ou quatro principais conselhos de qualquer melhor amigo. Trata-se de uma modalidade artística que consiste em, basicamente, lembrar de pessoas focando em aspectos bons que porventura se sobressaiam em comparação às coisas ruins que suas atitudes possam ter ocasionado. É uma virtude que precisa ser constantemente reforçada porque nós aprendemos coisas novas e entramos em contato com mais informação diariamente. Nosso cérebro se reorganiza para dar lugar a esses novos dados, e por isso vamos lembrando cada vez menos detalhes das pessoas com quem já convivemos. Uma hora, essas lembranças se reduzem a meros lampejos em nossas memórias, agarrados a emoções às vezes boas, às vezes péssimas.
Na última vez que fui para Erechim, meu pai chamou eu e meu irmão mais novo para almoçar um salmão na brasa. Meu pai se aposentou, mas ele continua consertando computadores e declarando impostos de renda para as pessoas. O imposto de renda é uma chance que o governo dá para o cidadão demonstrar o quanto ele ama estar inserido na lógica do fator social-civilizatório. O cidadão declara mais ou menos o seguinte: “ei, governo, veja só quanto dinheiro o suor e as lágrimas do meu trabalho renderam ano passado”. Aí o governo responde: “Joia. Eu vou pegar um pouco para transferir para as outras pessoas menos favorecidas, para que elas tenham a mínima noção do que é estar inserido na lógica do fator social-civilizatório através de investimentos em segurança, infraestrutura, educação e saúde”. Às vezes, o cidadão não acha isso justo e se revolta, sonegando ou apelando para esquemas de evasão fiscal. Coisa de criança.
Enquanto temperava o peixe, meu pai perguntou se eu lembrava de um tal de Juliano Petrich. Ele deu uma olhada no notebook de um cara com esse nome e que disse lembrar de mim, da época da escola.
— Se eu lembro daquele bosta? É claro que lembro — respondi.
Petrich era o bully da turma. O bullying é o segundo fenômeno com maior recorrência nas escolas do mundo inteiro (o primeiro é e sempre será o enfado). Petrich gostava de ficar perguntando coisas constrangedoras relacionadas a pinto e vagina para os colegas, e ficava rindo quando todo mundo transparecia estar envergonhado. Coisa de criança. Outras coisas que ele gostava de fazer envolviam empurrar todo mundo no recreio e tentar baixar as calças das pessoas.
A coisa mais interessante que já li sobre bullying foi um texto de um psicólogo que tentou, em alguns parágrafos, explicar que reagir ao bullying com violência gerava ainda mais violência. A criança que demonstrava esse tipo de comportamento estava apenas reproduzindo o que via em casa, extravasando o que sofria de outras pessoas (pais, tios, amigos da onça), e que incidências de bullying em escolas eram mero efeito colateral de deixar várias crianças juntas por muito tempo no mesmo ambiente.
É uma espécie de reação em cadeia: a criança sofre uma pressão psicológica em casa. Vira uma pequena tirana que pratica o bullying na escola. A vítima que sofre o bullying no recreio chega em casa e o aplica em menor grau em quem se mostra mais vulnerável, às vezes pode ser um animalzinho de estimação. O animal de estimação, por sua vez, não extravasa o rancor em ninguém porque o cérebro dele é pequeno demais para compreender esse conceito. Mesmo o cachorro pitbull, que tem uma cabeça enorme, não tem cérebro grande o suficiente para guardar rancor das coisas. Ele no máximo morde as pessoas porque foi treinado para morder ou por questões territoriais. Um cachorro nunca vai lembrar de alguém e pensar “minha nossa como eu odeio essa pessoa”.
Outra coisa que o psicólogo escreveu que achei bem bacana: o professor não deveria em hipótese alguma intervir e punir o aluno bully; deveria, sim, deixar que o sentimento de justiça e união da turma aflorasse e agisse como regulador social, apoiando os alunos que eram vítimas e segregando a criatura endiabrada, deixando para o fator social-civilizatório a incumbência de bússola moral, e não invocando um arquétipo de autoridade que poderia reforçar ainda mais o bullying.
Isso dificilmente acontecia.
Aparentemente a vontade de ter uma figura líder fazia com que o bully fosse mais idolatrado do que segregado. Parecia que a criançada preferia achar legal as atitudes dele e rir da vítima do que se compadecer e lutar por justiça. Coisa de criança.
O meu irmão, Frank, estuda Arquitetura. Esses dias enviei a ele um link que mostrava um belo palácio francês do século 16 em duas fotos, uma com a fachada original e outra de uma reforma recente, que substituiu os detalhes e ornamentos clássicos pelas linhas e ângulos retos do Modernismo, revestindo a obra com chapas de aço inox e vidro temperado. Perguntei o que ele achava disso:
— Morte aos envolvidos — ele respondeu.
— Hahaha! — respondi de volta.
É como se você pudesse parar, agora mesmo, nesse instante, observar algum aspecto da sua vida (algum amigo, familiar, a fila do supermercado, o ônibus que o leva até o trabalho, seu chefe, o almoço de ontem, a goteira na sala, os filhos, os bichos de estimação do vizinho, o filme que viu semana passada no cinema pagando meio-ingresso, a Polícia Militar, o Michel Temer, o saldo na conta corrente) e pensar o seguinte: “daqui a dez anos eu vou sentir rancor disso”.
E dez anos depois você tenta lembrar de alguma coisa, nem que seja para sentir a raiva. E não consegue. Porque não era importante. Era coisa de criança, como sempre.