Tudo é sample – principalmente o sample
Enclave #117: não existe criação. Nabokov.
EDITORIAL
Bom dia,
Esta é a edição #117 da Enclave, a newsletter que faz omelete sem quebrar ovos – apenas conversando com eles.
Infelizmente, a Enclave atrasou. As duas últimas edições foram tão legais que, como um salmão cansado retornando ao rio, perdemos o fio da meada. Com isso em mente, a edição de hoje leva a sério – e faz valer – a ideia de hipertexto. Reforçando:
O RelevO de julho foi enviado aos assinantes nos primeiros dias do mês.
A edição de junho do Jornal – contendo o texto da última Enclave – está disponível no nosso site.
HIPERTEXTO
Tudo é sample – principalmente o sample
Qual música toca no lobby da sua mente?
Na limitada e esvaziada cabeça deste editor, uma música – entre tantas outras – costuma ser especialmente acionada no estado padrão da cognição. Sem esforço, sem tentativa, sem direcionamento.
Muito provavelmente, fui apresentado a ela por meio do filme Lost Highway (Estrada Perdida, 1997), de David Lynch1. A quem já assistiu, ela toca naquela cena. A quem não assistiu, sugiro ir diretamente ao filme e ignorar o vídeo abaixo — que sequer é um notável spoiler, mas estraga o encantamento do primeiro contato. (Não ajuda que, neste momento, o filme não esteja disponível em nenhum serviço de streaming.)
De todo modo, a composição a que me refiro é ‘Something wicked this way comes’ (“algo sinistro vem nessa direção”), do inglês Barry Adamson (ouça melhor aqui ou no player mais abaixo). Já no título, trata-se de uma colagem de Macbeth, também usada por Ray Bradbury:
2nd Witch:
By the pricking of my thumbs,
Something wicked this way comes. [Knocking]
Open locks,
Whoever knocks!
[Enter Macbeth]
Macbeth:
How now, you secret, black, and midnight hags!
What is’t you do?
E neste mundo onde tudo é colagem (ou remix2), o “algo perverso” de Adamson é composto primordialmente de samples. Vamos a outra colagem, agora menos shakespeariana (eufemismo para “tiramos do ChatGPT”):
Um sample musical refere-se a um trecho de áudio retirado de uma gravação existente e incorporado em uma nova composição musical. Esses trechos podem ser retirados de qualquer fonte sonora, como músicas, discursos, filmes, sons ambientes e qualquer outra forma de registro de áudio. A prática de utilizar samples é bastante comum na produção musical contemporânea e tem sido uma parte essencial da cultura da música eletrônica, hip-hop, rap e outros gêneros.
A partir da técnica de sample, um trecho tão curto repetido, esticado ou dobrado se soma a outros trechos nada relacionados e, juntos, eles compõem a base de outro terreno. Ou, como resumiu Elvis Costello, “você pega os pedaços quebrados de outra emoção e faz um brinquedo novo”.
O exercício que faremos hoje poderia ser testado com uma infinidade de músicas. Poderia valer verdadeiras teses com discos como Endtroducing (DJ Shadow, 1996), Since I Left You (The Avalanches, 2000) ou Donuts (J Dilla, 2006), se é que essas teses já não existem. Enfim, há exemplos mais expressivos, que não apagam a beleza que dissecaremos aqui3.
Pois bem, sobre ‘Something wicked this way comes’. Há algo de hipnótico nessa joia, o que certamente chamou a atenção meditativa de Lynch a ponto de convencê-lo a inseri-la em seu filme (e de conquistar meu cérebro pouco perspicaz). A composição é direta: logo no primeiro segundo, conhecemos o loop da batida que nos acompanhará ao longo da jornada de quatro minutos e meio.
Segundo o Who Sampled, bíblia para esse tipo de atividade, a música de Barry Adamson contém quatro samples reconhecíveis, na seguinte ordem de aparição (clique nos títulos para ouvir):
Gary Walker & the Rain — ‘Spooky’ (1968).
Brother Jack McDuff — ‘Hunk o’ funk’ (1970).
Françoise Hardy — ‘Le temps des souvenirs’ (1965).
Massive Attack — ‘Blue lines’ (1991).
A base de ‘Something wicked’ é, claramente, ‘Spooky’, de Gary Walker (um dos Walker Brothers). Basta ouvir ambas para testemunhar – evitaremos a redundância da explicação. Se cultivássemos a ideia ingênua e tola de fidelidade artística, poderíamos ser levados a crer que Barry Adamson copiou (num mau sentido) uma música original alheia. E quem sabe até desmerecêssemos essa reutilização, embora bastante incrementada a seu modo.
Porém, se nos atentarmos a ‘Spooky’, perceberemos (ou descobriremos) que se trata de um cover: a versão original (ou inicial…) pertence ao grupo Classics IV. Então concluiremos, talvez com menos julgamento, que Gary Walker & the Rain também são copiadores!
A brincadeira não se encerra aqui. O vocal onírico de ‘Something wicked’ (tcha-ra-ra-ra…) pertence à francesa Françoise Hardy, em ‘Le temps des souvenirs’, que, quem diria, adaptou a seu modo – afrancesando e enchendo de charme – a música ‘Just call and I’ll be there’, de P. J. Proby (1964). Outra copiadora! Mas só se pode copiar a quem se ama…
Por fim, na primeira pausa de ‘Something wicked’ (1min11s), antes de o loop recomeçar, escutamos um trecho de ‘Blue lines’, do Massive Attack (1991). O grupo de Bristol não nos decepcionaria (jamais), uma vez que sua música contém dois samples gritantes: ‘Sneakin’ in the back’, de Tom Scott & The L.A. Express (1974); e a guitarra de ‘Rock Creek Park’, dos Blackbyrds (1975). Pior: se destrincharmos cada uma das músicas citadas, chegaremos em outro enorme jardim de veredas que se bifurcam. ‘Sneakin’ in the back’, por exemplo, já foi sampleada nada menos que 251 vezes – incluindo em ‘Capítulo 4, Versículo 3’, dos Racionais MC’s.
E assim retornamos a ‘Something wicked this way comes’, agora cônscios de sua arquitetura múltipla, hipertextual. Misturando um pouco de Gary Walker, Jack McDuff, Françoise Hardy e Massive Attack, nasce um novo filho – misterioso, inebriante, ativo.
Para criar a trilha sonora do lobby da minha mente, Barry Adamson recortou peças e as juntou a seu gosto. Não fez nada de novo (“Then again, who does?”) e, ao mesmo tempo, tudo que fez foi novo. Não existe criação pura no tecido recursivo da criatividade.
BAÚ
Vladimir Nabokov
Confesso que não acredito no tempo. Gosto de dobrar meu tapete mágico depois do uso, de forma a sobrepor uma parte do padrão sobre outra. As visitas que tropecem. E o maior prazer da intemporalidade – numa paisagem escolhida ao acaso – é quando paro entre borboletas raras e as plantas de que se alimentam. Isso é êxtase, e por trás do êxtase há algo mais, que é difícil de explicar. É como um vácuo momentâneo para dentro do qual corre tudo quanto amo. Uma sensação de unicidade com sol e pedra. Um arrepio de gratidão a quem possa interessar – ao gênero contrapontista do destino humano ou aos fantasmas ternos agradando um mortal de sorte.
Vladimir Nabokov. Fala, Memória, 1967 (trad. José Rubens Siqueira; Alfaguara, 2014).
“Bom, meu, eu particularmente tenho paixão assim pelo David Lynch, meu. Ele é tu-do! Meu, ele mistura muito bem essa coisa do inconsciente, abstrato com essa tecnologia estrambólica, polipotética, parafernálica, meu. Meu, Blue Velvet, meu. Blue Velvet é tudo! Blue Velvet, meu. Blue Velvet. A história é sobre um amigo de um cunhado de um… que doou sangue e tinha uma batida de carro. E no final tinha alguma coisa sobre veludo azul, meu. Por isso que o filme é Blue Velvet! Nome do filme… Blue Velvet.” Citação obrigatória toda vez que citamos David Lynch na Enclave, sem exceção.
Vídeo atualizado e altamente recomendado: Everything is a Remix.
Um excelente exemplo é este aqui, com o Daft Punk. Na verdade, pela materialidade, faz muito mais sentido assistir esses três minutos do que ler a atual edição da Enclave… É ótimo de visualizar justamente porque conseguimos enxergar o exercício de colagem. Para vídeos similares, recomendamos toda a playlist “Sample Breakdown”, do Tracklib.