Compilado enclávico
Enclave #118: black metal; adaptações cinematográficas; pinturas holandesas. Hammett; Assange; le Carré.
EDITORIAL
Bom dia, semiconhecido(a) com quem evitamos trocar olhares diante de um encontro inesperado na rua!
Seja bem-vindo(a) à edição #118 da Enclave, a newsletter impermanente, imperdível e impermeável. A edição de agosto do Jornal RelevO já foi enviada, ao passo que a edição de julho está disponível no nosso site.
Hoje, resgatamos textos e citações de vários anos atrás. Por um motivo ou outro, não havíamos conseguido trazer nenhum deles aqui para o Substack. Esperamos que você goste deste compilado enclávico.
HIPERTEXTO
Black metal: suicídios, assassinatos e até um pouco de música
Da Enclave #42, de dezembro de 2016.
Eis um conjunto de histórias bastante conhecido entre os fãs de black metal norueguês – eles são vários, aparentemente. Poucas bandas, afinal, incluem em sua linha do tempo [SPOILER] não só um suicídio de reações mórbidas, mas também um assassinato entre integrantes. Falemos, então, do Mayhem, cujas lendas tomaremos todas como verdade absoluta nesta pequena introdução.
Entre as décadas 1980 e 1990, o líder do grupo era o sueco Per Ohlin, mais conhecido como Dead, cuja infância havia sido marcada pelos minutos em que esteve clinicamente morto graças a uma ruptura do baço. Para entrar no Mayhem, Dead enviou à banda uma fita acompanhada por uma carta e um rato crucificado. Ele usava camisetas com anúncios de funeral, raramente se alimentava e visava, nos shows, a parecer o mais próximo possível com um cadáver.
O vocalista não só enterrava as roupas antes de usá-las, mas também chegou a pedir para ser enterrado antes de uma apresentação. Dead guardava um corvo morto consigo, além de pássaros igualmente sem vida embaixo de sua cama. Cortar-se no palco era mera extensão desse comportamento, e arremessar cabeças de porco no público servia para afastar os fãs que lá estavam de pagação.
Em 1991, três dos quatro integrantes do Mayhem dividiam a moradia de uma casa na qual costumavam ensaiar. Conta-se que Euronymous, guitarrista – guarde este nome –, atiçava as ideias suicidas de Dead, bem como as corriqueiras automutilações. Em dado momento, Dead cortou os pulsos e deu um tiro de shotgun na própria face. Dead deixou um recado em que pedia desculpas por dar um tiro dentro do lar – “perdoem o sangue” era a primeira frase.
As consequências realmente perturbadoras estão apenas começando: antes de comunicar a polícia, Euronymous rearranjou alguns elementos daquele cenário e o fotografou com uma câmera descartável. Também utilizou partes do cérebro de Dead em um ensopado – com o crânio, fez colares, depois entregues a outros músicos como presente.
As reações do guitarrista se tornaram grotescas até para o padrão da banda: Necrobutcher, o baixista, afirmou que foi informado do suicídio de Dead com uma ligação de Euronymous, que se limitou a narrar: “Dead fez algo muito legal! Ele se matou. Relaxa, eu tenho fotos de tudo”. Necrobutcher deixou o grupo. Anos depois, uma das fotografias do suicídio foi utilizada como capa de um álbum bootleg, não lançado oficialmente pelo próprio Mayhem. Não direcionaremos à imagem: se você fizer questão, procure no lamaçal da internet.
Com apenas guitarrista e baterista remanescentes, Euronymous fundou uma loja de discos e gravadora em Oslo, na qual costumava se reunir com outros nomes da cena, dentre os quais Varg Vikernes, do Burzum – que viria a se notabilizar pelas acusações de queimar igrejas. Apesar de não ter sido oficialmente culpado, uma onda de incêndios a igrejas norueguesas no início dos anos 1990 foi atribuída a ele. Houve mais de 50 depredações até 1996 por parte de um grupo que não ia muito com a cara do cristianismo. Uma das igrejas queimadas chegou a ser capa do EP Aske (cinzas), do Burzum.
A relação entre Euronymous e Vikernes se fortaleceu, este último surgindo como um pupilo na vida do primeiro. Vikernes foi convidado a participar de um reformulado Mayhem, enquanto Euronymous colaborava com as gravações do Burzum. Aparentemente, ambos competiam para ver quem era o mais cabuloso.
Em 1993, Vikernes conseguiu exponenciar a atenção dada ao black metal: ao conseguir uma entrevista com o jornal BT, ele assumiu responsabilidade pelas igrejas queimadas, bem como anunciou que, enquanto adorador do diabo, o mau estava apenas começando. A entrevista ocupou a primeira página do periódico em 20 de janeiro. O músico, que manteve o intuito de meramente tocar terror, foi preso logo em seguida. “[A prisão] é completamente ridícula. Eu pedi para a polícia me jogar em um calabouço de verdade e também os encorajei a usar violência”. Por falta de evidência, foi solto ainda em março.
Essa não seria a única passagem de Varg Vikernes pela prisão, o que nos leva ao desfecho dessas narrativas ramificadas. Após a repercussão da entrevista, Euronymous fechou sua loja de discos. Enquanto isso, cresciam as tensões entre a dupla, a ponto de, em agosto, Vikernes visitar Euronymous e, bom, assassiná-lo com 23 facadas (duas no rosto, cinco no pescoço e 16 nas costas). O documentário Until the Light Takes us (2008), aliás, acompanha todo esse período de exposição do black metal norueguês.
Ao todo, foram 15 anos de encarceramento, entre 1994 a 2009. Com seu projeto Burzum, Vikernes lançou dois discos na prisão, Dauði Baldrs (1997) e Hliðskjálf (1999). Apenas sintetizadores foram utilizados: ele não tinha acesso a guitarras, baixos ou baterias. Varg Vikernes ainda compõe suas músicas e tece seus comentários políticos. Ele vive com esposa e filhos em uma fazenda e, tecnicamente, pode ser considerado um youtuber1.
McQueen; Eastwood; Ruffalo: o policial adaptado
Da Enclave #42, de dezembro de 2016.
No cinema, uma mesma pessoa viva serviu como base para três personagens diferentes, em três filmes diferentes, com três atores diferentes, em três décadas diferentes. Trata-se de David Toschi, tido como inspiração direta e indireta para Steve McQueen [😯], em Bullitt (1968); Clint Eastwood [😱], em Dirty Harry (1971); e Mark Ruffalo [😒], em Zodíaco (2007). Nada mal.
Toschi, falecido em 2018, aos 86 anos2, foi policial em São Francisco entre 1952 e 1983. Nesse meio-tempo, recebeu McQueen para ver imortalizada, mais do que qualquer outra coisa, a posição de seus coldres, iconicamente apoiados no ombro (repare na fotografia acima).
Frank Bullitt, protagonista interpretado pelo descoladíssimo Steve McQueen, logo ganharia notoriedade pelas cenas de perseguição automobilística que fazem de Velozes e Furiosos uma Via Calma. A trilha sonora que o argentino [fã de bossa nova] Lalo Schifrin compôs para o longa-metragem de Peter Yates também é de se admirar.
O que nos leva a Dirty Harry, ou Perseguidor Implacável, de Don Siegel e com Clint Eastwood, cujo protagonista Harry Calahan parte de Dave Toschi, àquela época já ocupado com o caso do Zodíaco. O assassino, até hoje alvo de discussões, também serviu como base para o vilão Scorpio. Por sua vez, a trilha sonora, coincidentemente assinada pelo mesmo Lalo Schifrin, não coincidentemente é também admirável.
Zodíaco, de David Fincher, foi o primeiro deles a retratar o próprio Dave Toschi, justamente durante o caso que dá título à película. No filme, um Mark Ruffalo menos rústico que McQueen e Eastwood não só se utiliza dos coldres nos ombros, mas também assiste a Dirty Harry no cinema, em uma cena que faz referência direta às extrapolações de representação na ficção. O policial chegou a auxiliar a produção da obra: ele foi oficialmente listado como consultor técnico.
Ponto Saenredam
Da Enclave #20, de setembro de 2015.
Peter Jansz. Saenredam – esse ponto no meio do nome não está errado –, foi um artista competentíssimo. Suas pinturas, via de regra interiores de igrejas, sobrevivem com fôlego desde o século 17, em boa parte graças à incrível perspectiva que o holandês conseguia ilustrar. Contribuem para a beleza de suas obras a redução das figuras humanas, meros figurantes de estruturas colossais, e a própria nudez de algumas igrejas já reorganizadas pelo protestantismo.
Filho de artista – as obras bíblicas de seu pai em nada se assemelham às de Pieter –, Saenredam vingou em Haarlem, onde estudou e desenvolveu sua aptidão arquitetônica na aquarela. (Em Assendelft, cidade natal, ele até pintou uma igreja com o túmulo do pai). Em seus quadros, nota-se uma exposição do espaço tão peculiar quanto encantadora: é possível se ver sentado ali, como outro coadjuvante vivendo discretamente em meio ao sagrado.
É cativante comparar Peter Jansz. Saenredam com seu conterrâneo Emanuel de Witte, cujas pinturas de interiores, também belíssimas, expressam (na luz, nas cores, nas pessoas) uma força totalmente diferente.
Para mais obras de Saenredam, clique aqui ou aqui.
BAÚ
Sobre detetives
Da Enclave #43, de fevereiro de 2017.
Spade sentou-se na cadeira verde. O gordo começou a encher dois copos com a garrafa e o sifão. O rapaz havia sumido. As portas, situadas em três das paredes da sala, estavam fechadas. A quarta parede, atrás de Spade, era vazada por duas janelas que davam para a rua Geary.
— Começamos bem, senhor — ronronou o gordo, virando-se com um copo na mão, que ofereceu para Spade. — Não confio em um homem que não bebe à vontade. Se ele precisa tomar cuidado para não beber demais, é porque não se pode confiar nele quando bebe.
Spade segurou o copo e, sorrindo, fez o início de um cumprimento com a cabeça, por cima da sua bebida.
Dashiell Hammett, O Falcão Maltês (Companhia das Letras, 2001).
Sobre vigilância
Da Enclave #36, de junho de 2016.
Temos organizações e Estados com fronteiras cada vez mais indistintas entre si, com cada rede de influência global competindo entre si por vantagens. E seus fluxos de comunicação estão expostos a oportunistas, Estados concorrentes e assim por diante. Assim, novas redes estão sendo construídas além da internet, redes privadas virtuais, cuja privacidade é protegida pela criptografia. É essa base de poder industrial que está impedindo que a criptografia seja banida. (...) Acho que a única defesa eficaz contra a iminente distopia da vigilância é aquela em que cada um toma medidas para proteger a própria privacidade, porque os grupos capazes de interceptar tudo não têm incentivo algum para reduzir o próprio controle. Uma analogia histórica seria o modo como as pessoas descobriram que precisavam lavar as mãos. Essa mudança exigiu a consolidação e depois a popularização da teoria dos germes da doença e demandou o enraizamento da paranoia em relação ao alastramento da doença por meio de alguma coisa na nossa mão que não podia ser vista, da mesma forma como não dá para ver a interceptação em massa. Quando esse conhecimento se propagou o suficiente, os fabricantes de sabonete se puseram a fabricar produtos que as pessoas consumiam para aliviar o medo. É necessário instilar medo nas pessoas para que elas compreendam o problema antes de uma demanda suficiente ser criada para solucioná-lo.
Julian Assange3, Cypherpunks: liberdade e o futuro da internet (ed. Boitempo, 2012).
Sobre espionagem
Da Enclave #38, de setembro de 2016.
Era, por contraste, o outro lado da natureza de Haydon que ele, como colega, achara mais fácil respeitar: a capacidade, que ardia em fogo brando, de ser um administrador natural de agentes; seu raro senso de equilíbrio; a habilidade para lidar com agentes duplos; a montagem de operações fraudulentas; a arte de estimular afeições e até amor, embora isso contrariasse um grande número de outras lealdades suas. (...) Embora seus admiradores, Bland Prideaux, Alleline, Esterhase e todo o resto de seu fã-clube pudessem nele ver o homem completo, a verdadeira habilidade de Bill consistia em usá-los, viver através deles para se completar: um pedaço aqui, outro ali, de suas identidades passivas, assim dissimulando o fato de que ele era menos, muito menos que a soma de suas qualidades aparentes... e, finalmente, ocultar essa dependência sob a arrogância de um artista, chamando-as de criaturas de sua mente.
John le Carré4, O espião que sabia demais (ed. Record, 2012).
Aparentemente, ele foi removido por… neonazismo. Em uma rápida pesquisa (nosso interesse por todo este tema acabou na publicação do texto), chegamos nisso aqui. Quem diria.
Curioso como Assange ainda está vivo, e não foi encontrado morto após “tropeçar em uma escada” ou algo do gênero.
Outro que nos deixou ao longo da existência da Enclave/RelevO. Temos alguns conteúdos que perpassam o sr. Cornwell, vulgo John le Carré.