Espremidos entre decadência e gamificação
Enclave #124: estímulo e resposta. Paul Auster.
EDITORIAL
Bom dia, assinante e colaborador(a) do RelevO! Como você está?
No início do mês, enviamos a edição de junho do Jornal a todos os assinantes e pontos de distribuição. Este editor se divertiu bastante com as centrais, que promovem um mercado de transferência de síndicos.
A Enclave de hoje, sobre enshittification e gamificação, acaba – meio sem querer, como uma boa continuidade retroativa – formando uma trilogia iniciada a partir de outros dois grandes invasores do nosso cotidiano:
Esperamos produzir mais textos assim, contemplando vícios contemporâneos que não começaram hoje, mas explodiram a partir das nossas estruturas modernas de comunicação.
Nossa última edição, que tem como fio condutor o filme Dias Perfeitos, tornou-se com alguma folga a mais lida deste espaço1. Agradecemos pela leitura e pela expansão constante de audiência!
Até breve.
HIPERTEXTO
Espremidos entre decadência e gamificação
1.
Desde que descobri o termo “enshittification”2, cunhado por Cory Doctorow, muita coisa passou a fazer sentido. A partir do momento em que enxergamos o padrão, não conseguimos desligá-lo.
Enshittification nada mais é que a piora consciente de uma plataforma (site, app, serviço etc.) para atender à vontade ou necessidade de monetizar. Também poderíamos chamar o fenômeno de “decadência de plataforma” (platform decay).
Descrevendo a decadência gradativa do TikTok, por exemplo, Doctorow sintetiza e, ao mesmo tempo, complementa:
Eis como as plataformas morrem: primeiro, elas são boas para seus usuários; então eles abusam de seus usuários para melhorar as coisas para seus clientes; finalmente, eles abusam desses clientes para recuperar todo o valor para si próprios. Então, elas morrem.
Desconheço os avanços e retrocessos do TikTok – uma vez que sou velho –, mas não é difícil enxergar o padrão nos apps tão incrustados na vida moderna. Primeiros, temos recursos legais de graça. Depois, somos afundados por anúncios (sempre eles). Depois, temos de pagar pelo que obtínhamos de graça. Até lá, já somos estruturalmente dependentes do serviço, ou encontramos uma alternativa emergente (que passará pelo mesmo processo), ou perdemos o interesse.
Vocês lembram como era pesquisar no Google? Procurávamos um termo em uma estrutura simples, porém eficaz, e não éramos inundados por itens à venda, quando não o anúncio de algo inverso ao que procuramos, mas que simplesmente comprou espaço. Exemplo: já digitou o nome de uma empresa e obteve, nos primeiros resultados, apenas concorrentes dessa empresa como forma de anúncio? Colhemos as consequências de estruturar a visibilidade do planeta a partir do Google – que o SEO morra logo para podermos reclamar de seu substituto.
Hoje, o Instagram é praticamente inutilizável. Apenas almas já evaporadas toleram tamanho desconforto de abrir uma ferramenta tão entupida de anúncios dos mais variados graus de inconveniência. Apaguei o aplicativo há tempos e, se realmente quero postar alguma coisa, baixo de novo para fazê-lo, então apago novamente3. Manter a versão lite é uma alternativa razoável (e absolutamente não charmosa – que vergonha dizer que usa o “Instagram Lite” –, mas surpreendentemente limpa de anúncios).
Por outros tantos motivos, também prefiro manter o iFood desinstalado. Quando realmente faço questão, sigo a mesma lógica e o reinstalo. No entanto, isso tem sido cada vez mais raro pelo simples fato de que me incomodo cada vez mais (o que pode não ser só culpa do app…). De todo modo, você é bombardeado com descontos que não são descontos, então entra num labirinto de cupons que nem pediu, mas em todo caso não funcionam (se não assinar X ou Y), ofertas de planos e, enfim, toda uma experiência cansativa para o usuário gratuito. Já tentou se comunicar com um restaurante ou cancelar um pedido não entregue? É muito mais difícil que três anos atrás.
Não sei quanto o modelo inicial onerava os restaurantes; sei que (1) a plataforma era mais prática para o usuário gratuito; (2) a companhia estava apenas se matando para agregar mais e mais e mais clientes, visando a abocanhar seu mercado o mais rápido possível. E o iFood conseguiu exatamente o que queria: crescer. Porém, desconfio que o cenário atual não seja melhor, em termos de custos e taxas, para restaurantes e entregadores. Até porque, uma vez formado o Leviatã, a grande empresa tem toda a estrutura a seu favor: você, pequeno restaurante, vai conseguir ficar de fora do Ifood? Lógico, isso já bifurcou em planos.
Aliás, não se trata de criticar a funcionalidade paga em si. O cerne do problema está no modelo generalizado em que primeiro obtemos algo gratuitamente, depois precisamos pagar por uma versão medíocre do inicialmente ofertado. No meio do caminho, o estorvo real: a decadência consciente.
Por fim, os serviços de streaming. Um contexto até diferente, uma vez que é sabido como a indústria inteira (incluindo o cinema) ainda sofre de calafrios catatônicos num quarto escuro desde a disrupção (…) causada pela Netflix. Ainda assim, nesse eterno retorno de andar para frente para voltar atrás, hoje, nós – trouxas que sonhamos com a internet como salvação – nos vemos diante da obrigação estrutural de assinar cada vez mais serviços de streaming pagando mais caro para obter menos conteúdo, este cada vez mais segmentado. Não basta assinar o streaming, é preciso alugar filmes, fechar pacotes adicionais ou pagar pela versão completa dele.
Que Deus proteja a pirataria.
2.
Eis outro padrão tão ou mais irritante. Da mesma forma, uma vez identificado, nunca mais se esconde. Mas esse é uma buzzword. Um tópico quente no LinkedIn (alvo tão fácil que vamos deixar passar). Uma estratégia de negócio.
Sua empresa precisa gamificar.
O governo precisa gamificar.
O banco precisa gamificar.
Você já entrou para a igreja da gamificação? Pois tudo – tudo – está sendo ga-mi-fi-ca-do. Em que consiste a gamificação? Subir de nível. Acumular pontos. Trocar recompensas.
Não é exagero: do governo (nível prata, nível ouro) ao banco (o Itaú tem o Minhas Vantagens, o Nubank tem níveis de Nucoins – não precisa fazer sentido), a estratégia é imparável. Afinal, a estratégia em questão funciona: a gamificação apela aos nossos instintos mais rústicos de estímulo e resposta. O texto abaixo é a melhor contextualização (e argumentação) possível sobre o tema. Recomendamos a leitura.
Pois bem, a gamificação nada mais é que a cenourinha balançando na nossa frente (porque o nabo provavelmente já está atrás). Todo tipo de produto ou serviço tem apelado à estratégia de nos iludir com pequenos avanços lúdicos para nos prender.
Talvez não haja exemplo mais claro que a farsa chamada Duolingo, hoje avaliada em cerca de US$ 8 bilhões (🤷🏻♂️). Você talvez já tenha tentado aprender algum idioma por meio do app, e quem sabe até convencido a si mesmo que aprendeu alguma coisa. No entanto, o Duolingo não ensina idioma algum – apesar de suas 43 línguas ofertadas e de seu 88 milhões de usuários (sim, sim, quem é o Jornal RelevO para afirmar alguma coisa?). O Duolingo ensina a jogar Duolingo.
Línguas presumem comunicação: suponha que João, brasileiro, não sabe o que é um verbo, mas que, por algum cruzamento esquisito do comércio mundial, cresceu num vilarejo cujos pescadores falam francês. João nunca precisou pensar sobre a linguagem e talvez nem consiga se expressar por escrito em francês, mas aprendeu francês. Sem ter tido uma aula (formal) do idioma, ele conseguiria sobreviver na França ou em qualquer país colonizado por ela (o famoso “se virar”). E linguagem é – a despeito de todos os cursos, módulos, métodos, promessas e enganos – em última instância, apenas isso: sobrevivência.4
Por sua vez, o que você aprende após concluir todas as etapas de um “curso” do Duolingo? Aqui, vamos pegar emprestado o texto do amigo Bolívar Escobar:
Esse certificado [do curso de alemão do Duolingo] traz um texto vago, se isentando de qualquer consolidação pessoal. Ele não diz, por exemplo, que agora eu sei falar alemão no nível B1 ou que eu estou pronto para entrar em um bar em Düsseldorf e pedir um Schnitzel acompanhado de um Orangesaft. É apenas um pseudocertificado que atesta que eu tive paciência pra fazer todos os exercícios que a plataforma disponibiliza. Tudo bem, o Duolingo tomou o cuidado de nunca deixar explícito que seu resultado seria a fluência ou a compreensão em qualquer nível padronizado. Entretanto, um estranho fenômeno aconteceu nos últimos meses. Eu resolvi entrar no aplicativo todos os dias e fazer uma meta diária de uns 5 ou 6 exercícios. Segundo o Duolingo, minha assiduidade seria recompensada mantendo um streak, isto é, uma corrente de ganho de experiência que garantiria recompensas maiores e a manutenção das tarefas já feitas – elas não sofreriam, portanto, um decay que demanda reforços posteriores.
À medida que eu dedicava meus minutos diários ao Duolingo, eu percebi que, independente dos meus avanços com o idioma, a lógica interna do sistema se tornava muito mais evidente. Eu conseguia responder às perguntas com mais facilidade por causa das repetições de temas. Completava os espaços em branco com as palavras certas cada vez mais rápido, conseguia prever a estrutura das frases sem ler enunciados e até mesmo passei a detectar que palavras eu podia omitir nos exercícios de pronúncia. O Duolingo não estava treinando tanto meu alemão quanto a minha capacidade de ser um ótimo usuário do Duolingo.
(…)
Perceba que eu usei palavras como experiência e pontos para me referir ao meu progresso no Duolingo. A estratégia de gamificação surge, em plataformas e sistemas diversos, como uma maneira de tangibilizar avanços, engajar participantes e criar contextos plausíveis para dar recompensas a eles. Será que eu sou mais jogador do que aluno no Duolingo então? A série de características que Jesse Schell (The Art of Game Design, 2008) enumera para definir o que é um jogo começa com a que eu considero mais emblemática: antes de ser um sistema de regras, com objetivos, conflitos e interatividade, um jogo é um campo ou uma área que precisa ser adentrada intencionalmente pelo jogador. Talvez seja essa a principal diferença entre um jogo e um sistema gamificado: você pode estar ganhando pontos e acumulando experiência sem ter concordado com isso.
Quando a lógica da educação encontra a lógica do capitalismo de plataforma, um embate acontece e as armadilhas surgem. Eu me questiono se o objetivo do Duolingo é realmente me ensinar alemão ou apenas cativar meu uso para que eu continue retornando ao aplicativo.
Não há símbolo maior de lavagem cerebral por gamificação que esse – e, de novo, ele vale US$ 8 bilhões5. Porém, a doença já se espalhou por toda e qualquer indústria, e assim seguimos, entre apostas, anúncios, recompensas e… aonde queremos chegar mesmo?
BAÚ
Ninguém pode cruzar a fronteira que separa uma pessoa da outra
Meu pensamento vagueou por várias semanas em busca de um modo de começar. A vida de uma pessoa é algo inexplicável, eu dizia a mim mesmo, o tempo todo. Não importa quantos fatos sejam relatados, quantos detalhes sejam oferecidos, o essencial não admite ser contado. Dizer que fulano nasceu em tal lugar e foi para tal cidade, que fez isso e aquilo, que se casou com fulana e teve tantos filhos, que ele viveu, morreu, deixou tais e tais livros, ou essa batalha, ou aquela ponte — nada disso nos diz muita coisa. Todos queremos ouvir histórias e as ouvimos do mesmo modo que fazíamos quando éramos pequenos. Imaginamos a história verdadeira por dentro das palavras e, para fazê-lo, tomamos o lugar do personagem da história, fingindo que podemos compreendê-lo porque compreendemos a nós mesmos. Isso é um embuste. Existimos para nós mesmos, talvez, e às vezes chegamos até a ter um vislumbre de quem somos realmente, mas no final nunca conseguimos ter certeza e, à medida que nossas vidas se desenrolam, tornamo-nos cada vez mais opacos para nós mesmos, cada vez mais conscientes de nossa própria incoerência. Ninguém pode cruzar a fronteira que separa uma pessoa da outra — pela simples razão de que ninguém pode ter acesso a si mesmo.
Paul Auster, A Trilogia de Nova York, 1987 (ed. Companhia das Letras, 2010).
E, sem conseguir responder em que consiste uma vida bem vivida, encontramos (sem querer, como preferimos), uma resposta de Henry Miller.
Emerdação? Merdalização? A Folha traduziu como “virar bosta”. Diante da falta de um termo conciso, fica “enshittification” mesmo.
Toda vez que me reprimo por essa impraticidade, lembro que estou reclamando por clicar em uns três botões adicionais, afinal apagar e reinstalar é menos trabalhoso que… qualquer coisa. Se alguém nos der comida na boca por uma semana, nunca mais vamos querer usar um garfo.
Não estou me referindo à capacidade específica de ler outros idiomas, o que me parece um universo à parte. Um outro adendo: na nossa base de leitores, certamente temos professores de idiomas. Embora não lecione há anos, sei que o pior tipo de aluno [desconsiderando questões disciplinares graves] é aquele que frequenta, mas não se abre, não corre riscos e, portanto, não permite expor-se a uma situação de aprendizagem real. Resolver exercícios na apostila (ou num app…), para não dizer que não ajuda em nada, ao menos é em essência uma habilidade tangencial. Para não estender o assunto, deixo um exemplo de tecnologia positiva e, a meu ver, de proposta oposta à do Duolingo: TeacherAI. Tenho usado há três meses e considero uma ferramenta extraordinária (obviamente, não fui pago para relatar isso, mas posso me estender em outro momento).
Se você gosta do Duolingo e considera útil, sem problemas. Ainda podemos ser amigos; tudo aqui é só drama! É evidente que múltiplas estratégias podem compor um aprendizado real – dificilmente avançamos com apenas uma. De uma premissa não abro mão: é uma ferramenta extremamente enganosa (inclusive, o slogan do site é justamente “A melhor maneira do mundo de aprender um idioma”). Não é a melhor. Não se aprende um idioma com – primordialmente – isso.
Lamento um fim de texto tão safado, mas era isso ou esperar mais 45 dias.
Questões bem interessantes., de muito importância para escritores e/ou educadores.
A "pancada na moleira" sobre o Duolingo é de se pensar. Aliás, se tudo vira jogo, não há jogo que se jogue; que nos divirta; que faça aprender algo; que termine bem...
Estou começando agora no substack e simplesmente AMEI essa edição! Que bom que encontrei vcs! Abraço e sucesso na newsletter!