Uma grande volta de medalhas, diplomas, cortinas e Cannes
Enclave #126: homenageamos Adhemar Ferreira da Silva, um brasileiro absurdo. Com Vinicius, Niemeyer e Jobim. Antônio Maria.
EDITORIAL
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Nosso texto de hoje já estava quase pronto, até que uma descoberta acidental – praticamente o único motivo pelo qual vale a pena viver – tomou a frente. Como um sprint na reta final na pista atlética.
Ainda embebidos de espírito olímpico (xingar no trânsito só amanhã) e lamentosos pelo fim desse evento desafiador de limites físicos e mentais, resgatamos não só o ilustre brasileiro Adhemar Ferreira da Silva, mas também sua relação com o teatro e o cinema brasileiros.
Em notas paralelas, trazemos aqui as novidades da Seiva, nossa parceira querida:
O curso Engrenagens do Romance, de Carol Bensimon, autora e vencedora do Jabuti (restam menos de 80 vagas; vendas até o final do mês).
O livro Como ser Artista, de Jerry Saltz.
A newsletter gratuita Aurora (odiamos esse tipinho!), uma salada de intertextualidade.
Agora vamos voltar os anos 1950.
Até breve!
HIPERTEXTO
Adhemar: uma grande volta de medalhas, diplomas, cortinas e Cannes
Adhemar Ferreira da Silva (1927-2001) é um dos maiores ícones do esporte brasileiro, com uma carreira marcada por feitos extraordinários no atletismo. Ele se destacou como bicampeão olímpico no salto triplo, conquistando medalhas de ouro nas Olimpíadas de Helsinque, em 1952, e de Melbourne, em 1956. Em Helsinque – que em Portugal é Helsínquia e em finlandês só pode significar “pia do inferno” –, Adhemar quebrou os recordes mundial e olímpico com um salto de 16,22 metros. Foi a primeira medalha de ouro do atletismo brasileiro e apenas a segunda em Jogos Olímpicos.
Um belo registro de 1952 está disponível aqui (não é possível anexá-lo), com um Adhemar belíssimo e estilosaço.
Em Melbourne, ele superou novamente sua própria marca, com um salto de 16,35 metros. Esses feitos fizeram de Adhemar o primeiro brasileiro a conquistar duas medalhas de ouro olímpicas, consolidando sua posição como um dos grandes nomes do esporte mundial. Como se não bastasse, ele costuma ser creditado como o criador da volta olímpica.
A história remonta à Olimpíada de 1952, lá mesmo na pia no inferno. Depois de vencer a disputa do salto triplo, o medalhista deu uma volta inteira ao redor da pista, segurando uma pequena bandeira do Brasil enquanto recebia os aplausos do público. Essa celebração espontânea acabou se tornando uma marca registrada de comemorações esportivas. Vale ressaltar: ele costuma ser creditado; é difícil pontuar a exata criação da volta olímpica.1
Segundo o próprio Adhemar:
A seguir, um enorme barulho, e esse barulho vinha da arquibancada, vinha daqueles que estavam assistindo, e que gritavam em uníssono, “da Silva, da Silva, da Silva”, até que o juiz da competição dirigiu-se a mim e pediu que eu desse uma volta, porque a plateia, os assistentes, assim estavam pedindo. Eu fiz isso debaixo dos aplausos de toda aquela assistência, e foi a primeira vez que tivemos a volta olímpica.2
Além de suas conquistas olímpicas, Adhemar estabeleceu cinco recordes mundiais no salto triplo ao longo de sua carreira, sendo o último em 1955, quando saltou 16,56 metros. Ele também brilhou nos Jogos Pan-Americanos, conquistando medalhas de ouro nas edições de Buenos Aires (1951) e da Cidade do México (1955). Seu legado ficou eternizado no Hall da Fama do Atletismo: trata-se do único brasileiro da lista.
And now for something completely different
Adhemar não era só atleta, medalhista e recordista olímpico. Segundo a CNN, ele também “era formado em Direito, Belas Artes, Relações Públicas e Educação Física, falava vários idiomas, foi adido cultural do Brasil na Nigéria, colunista do jornal Última Hora”3. Lógico, não tudo enquanto atleta. Escultor, sim: sua formação e seu ofício precederam a incursão no atletismo. Palavras dele:
Nós trabalhamos durante três anos após a minha formatura, eu lembro-me que o nosso grupo, nós éramos em seis os formandos, nos trabalhávamos nos bustos do Matarazzo. Então, foi um trabalho feito de bronze, e existia, não sei se ainda existe, em cada uma das fábricas da Matarazzo, um busto, em homenagem ao velho Matarazzo. Depois eu fui trabalhar num ateliê de artes, chamava-se Brasilarte, andei trabalhando um certo tempo com alguns escultores famosos, e enquanto eu trabalhava nesta oficina, que era durante o dia, à noite eu passava a estudar datilografia, taquigrafia e correspondência.
Isso só para contextualizar que ele não cairia de paraquedas (ou de salto triplo) na arte – qualquer arte. Adhemar sabia tocar violão e esculpir. Depois da Olimpíada de Helsinque, já trabalhava na imprensa, dividindo seu tempo entre o atletismo e o cargo de funcionário municipal de São Paulo. Jânio Quadros, o imbecil – então prefeito de São Paulo –, ainda o demitiria pelo tempo fora do trabalho, representando o Brasil em competições internacionais.
Assim, precisamos pular alguns anos4 para chegar em Orfeu da Conceição.
A história é famosa, mas por outros dois protagonistas. Vinicius de Moraes, 42, queria adaptar o mito grego de Orfeu à realidade das comunidades cariocas. Ele precisava de um músico, então foi apresentado ao jovem arranjador, compositor e maestro Antonio Carlos Jobim. O ingênuo Tom, 29, perguntou ao [ainda] pomposo diplomata “vai um dinheirinho nisso aí?”, e assim a parceria entre eles começou.
Um belo dia, cinco ano depois [de escrever o primeiro ato, em 1948], sendo eu cônsul do Brasil em Los Angeles, veio-me de repente o segundo ato. O inferno do Orfeu negro seria o Carnaval carioca. Orfeu buscaria Eurídice em meio ao ritmo desencadeado das escolas de samba, dos passistas, dos mascarados em travesti, dos negros libertando-se de sua pobreza no luxo das fantasias compradas à custa de economias de um ano.
O espetáculo estreou em 1956 no Theatro Municipal do Rio de Janeiro. Nos cenários, apenas Oscar Niemeyer5. Nessa época, Adhemar treinava no Vasco da Gama, não mais no São Paulo, e conheceu Vinicius no Rio de Janeiro.
E quem complementaria um panteão com Vinicius, Tom e Niemeyer? Jânio Quadros. Brincadeira6. Você já entendeu. Creditado como “Ademar Pereira da Silva”, o medalhista olímpico chegou a atuar na peça. E aqui temos algumas dúvidas nos detalhes.
Segundo sua filha, Adyel, a peça teve apenas uma apresentação. Mas sabemos que houve mais, como a própria edição brasileira, publicada pela Companhia de Bolso (2013), informa. E nessa mesma edição, “Ademar Ferreira da Silva” – nome errado, sobrenome certo –, consta no elenco, mais especificamente no coro. Encontramos uma foto catalogada apontando Ad[h]emar no acervo da Funarte.
A peça estreou em 25 de setembro de 1956, e as Olimpíadas de Melbourne aconteceram entre o fim de novembro e o início de dezembro. Quem sabe Adhemar não participou da temporada inteira, daí a informação de sua filha. O fato é que Orfeu da Conceição foi um marco por ter um elenco inteiramente formado por atores negros, o que era (ainda mais) incomum.
Musicado por Tom Jobim e Luiz Bonfá, o espetáculo encantou o diretor Marcel Camus, que aceitou adaptá-lo ao cinema – digo aceitou porque Vinicius já trabalhava no roteiro com o produtor Sacha Gordine7. Vale lembrar que o Poetinha não só havia sido crítico de cinema, mas também servira como vice-cônsul em Los Angeles entre 1946 e 1950. Para engrossar a carteirada, ele era amigo de Orson Welles8.
Daí surgiu Orfeu Negro (1959), com elemento quase todo novo – exceto por Adhemar, agora (inequivocamente) a Morte. Na peça, o papel (de Dama Negra) havia sido interpretado por Francisca de Queiroz.
Orfeu Negro, tecnicamente um filme franco-italiano, ganhou a Palma de Ouro no Festival de Cannes e o Oscar de Melhor Filme Estrangeiro, ajudando a difundir a cultura brasileira pelo mundo. Quem saiu ganhando foi o francês, mas isso é papo para outra conversa. O fato é que Adhemar, o monstro, estava lá. Também lá.
As trilhas sonoras – da peça e do filme – também são um capítulo à parte. Ali se eternizaram belezas como ‘Se todos fossem iguais a você’, ‘Lamento no morro’, ‘A felicidade’ e ‘Manhã de Carnaval’, monumentos da cultura brasileira. Não sem alguns ruídos:
Vinicius, porém, não gostou da versão cinematográfica de sua obra. Dizia que faltava a ela “a natureza de um dos divinos músicos do morro carioca”. O Poetinha teve bons motivos para não gostar do tratamento que Jacques Viot e Camus deram ao roteiro. Mas nada o teria aborrecido tanto quanto a traição à música original, por mais que a trilha sonora do filme tenha feito sucesso por todo o mundo.
Dos seis temas escritos, na primeira vez em que Tom Jobim e Vinicius trabalharam juntos, nada se aproveitou. ‘Se todos fossem iguais a você’, primeiro êxito da dupla, nem foi lembrada. A valsa ‘Eurídice’ também não aparece. Vinicius & Tom fizeram três novas canções para o filme, uma delas ‘A felicidade’, cantada na trilha por Agostinho dos Santos, a voz de Orfeu para Breno.
De nossa parte, fica a reverência a este personagem único da história brasileira. Adhemar foi um monstro, um mito e um campeão, tudo isso com a versatilidade, a articulação e a inteligência encontradas apenas em indivíduos fora da curva. É com o mais saudável ângulo do pertencimento nacional – de que serve a palavra patriotismo? – que lembramos este atleta e artista, epítome do que há de melhor no brasileiro.
Curiosamente, Adhemar Ferreira da Silva e Luiz Bonfá morreram no exato mesmo dia: 12 de janeiro de 2001. No Além, ouviu-se ‘Manhã de Carnaval’.
BAÚ
Beleza
Acorda esse homem inesperada e injustificavelmente cedo, sem saber direito onde está, mas inteiramente certo de que aquela cama não é a sua. O despertar de quem dorme fora é sempre assim e a primeira sensação é uma desconfiança: terei sido raptado? Aos poucos, as ideias se arrumam, a inconsciência do sono vai cedendo lugar à lucidez das coisas exatas e a realidade se comprova na cor da parede, no desenho dos móveis, no cheiro da fronha e dos lençóis, que é uma agradável novidade olfativa. Esse homem chega à simples conclusão de que é um hóspede. Tem um dia grande e vadio pela frente. Poderá, se quiser, continuar na cama, lendo, tramando, cochilando e, mais que tudo, gozando a perspectiva do tempo sem horários e sem tarefas. Mas decide levantar. Antes, faz sua reza íntima de todas as manhãs, a que diz: “Não te deixes tomar pelo pequeno êxito e não te eleves acima do conhecimento que tens da tua frequente fragilidade” etc. Abre a janela. A bruma baixa desfigurou a silhueta dos montes. Vai chover e o dia terá um céu triste. Mas o vento frio da serra e as flores, que são tantas — amarelas, vermelhas, azuis — trazem uma alegria completa, uma impressão de salvamento, em que os cansaços e desgostos aparecem como penas já cumpridas. Dali por diante, esse homem está quite com os castigos e lhe chegam — como nos domingos da meninice — as esperanças, o ânimo, a ideia tranquila de existência. Esse homem não sabe se está apaixonado por uma mulher ou simplesmente pela vida. Mas, em seu coração, há um amor indefinido, que por si, pelo bem que faz, poderá ficar sem alvo certo, sem reciprocidade. Basta-lhe a manhã de vento frio, o perfume das flores e o verde do capim viçoso. Deve ser este um grande momento de sua vida, porque a sensação constante de saudade não está, pela primeira vez, entre os seus sentimentos.
Antônio Maria9. Vento vadio: as crônicas de Antônio Maria, Todavia, 2021, pp.130-131. Publicada, originalmente, no Diário Carioca, de 07/11/1954.
Ou seja, estamos sendo lamentavelmente cautelosos, o que não bate com o nacionalismo aflorado pelo espírito olímpico. Esqueçam tudo isso: Adhemar com certeza foi o primeiro a dar uma volta olímpica, inventando-a e popularizando-a para o planeta inteiro. BRASIL!
A continuação do depoimento é ainda mais fantástica: “E naquele ano de 52, um outro atleta também deu a volta olímpica. Foi Emil Zatopec, da Tchecoslováquia, por razão de ganhar os 5.000, os 10.000, e ganhar a maratona. E a família Zatopec levava quatro medalhas de ouro, porque sua mulher, Dana Zatopec, ganhava a prova do arremesso do dardo, então foram quatro medalhas de ouro. Emil Zatopec foi convidado, tal como da Silva, a dar a volta olímpica. O que eu senti quando estava dando a volta olímpica? (…) O público não aceita, mas eu não senti absolutamente nada. Explico por que: eu sabia o que estava fazendo, mas não dava para interfectar, porque eu estava vindo de uma concentração de quatro meses, quatro meses com o pensamento voltado para aquele instante. Então a partir do término da competição, eu comecei a desmanchar dentro de mim”.
O site da Cásper Libero confirma sua formação como Relações Públicas, complementando que “Além da Comunicação, Adhemar se formou em Belas Artes, Educação Física e Direito”.
A vida de Adhemar é realmente impressionante, então precisamos fazer muitos recortes. Recomendamos fortemente a leitura de seu depoimento ao Museu da Pessoa. Versão completa (1h14min) aqui.
Palavras de Vinicius: “…e não apenas porque eu acredite que nada de ruim poderá jamais sair das mãos de Oscar Niemeyer. (…) [Niemeyer] é o antimedíocre, e o é sem se furtar à dialética da vida, sem tirar o corpo fora à injunção de não deixar sua criação apenas no papel mas de realizá-la com as imperfeições decorrentes de mil e um fatores exteriores que intervêm posteriormente na sua realização” (Orfeu da Conceição, Companhia de Bolso, 2013).
O pior é que Jânio, já como governador, tentou colaborar com Vinicius, oferecendo levar a peça para São Paulo. “Em São Paulo particularmente a cooperação encontrada foi inexcedível. O governador Jânio Quadros prometeu-me pessoalmente autorizar uma subvenção de duzentos contos, caso a Comissão de Teatro estivesse de acordo com o pedido” (Orfeu da Conceição, Companhia de Bolso, 2013).
Um nome completamente Hermes & Renato.
É fácil encontrar relatos de Vinicius sobre/com Welles no site da VM Cultura.
Por fim, corrigimos a última injustiça desta publicação: ‘Manhã de Carnaval’ também é de Antônio Maria. :)
Baita homenagem!
Incrível a história do Adhemar. ❤️