Algumas notas sobre ambientação e caracterização
Enclave #127: os amigos que fazemos pelo caminho. Nada – ainda – sobre Oasis.
EDITORIAL
Bom dia!
Bem-vindo(a) à Enclave, a newsletter com garfo num mundo de sopa.
Nossa última edição, ainda em clima olímpico, contemplou Adhemar Ferreira da Silva. A de hoje é bem menos interessante.
Por sua vez, a edição de setembro do RelevO já está disponível em nosso site.
I NEED SOME TIME IN THE SUUUUUUNSHIIIIIIIIIIIIIIIIIIIIIIINE!
Biblical.
HIPERTEXTO
Algumas notas sobre ambientação e caracterização
Hoje, queremos trazer premissas. Questionáveis, narratologia de boteco.
Queremos expor como os dois elementos primordiais de uma grande narrativa são caracterização e ambientação. Enredo é secundário, diálogo também. Isso não significa que não sejam importantes, apenas que – para este humilde e desqualificado editor –, no frigir dos ovos, caracterização e ambientação sempre se sobrepõem.
Em outras palavras, com ótimos personagens e um ambiente envolvente, uma grande narrativa não requer uma grande história. Ou história alguma.
Juntar feng shui e personal branding
Ambientação é a capacidade de uma narrativa representar o espaço da ação. Isso na literatura, no cinema, na televisão, no teatro, no videogame. Em termos práticos, a boa ambientação traz vontade de estar – fisicamente – no lugar onde a narrativa transcorre.
O exemplo mais óbvio é Blade Runner. Seria legal morar – isto é, de verdade, a valer – no universo de Blade Runner? Muito provavelmente não. O planeta está destruído1, não há muita margem para otimismo, só chove e você pode se descobrir um androide. Mas dá vontade (e, para ser sincero, ainda parece melhor que São Paulo). Só a cena de perseguição a Zhora apresenta camadas e mais camadas daquele universo, com uma profundidade tão convincente quanto catártica. E bonita.
Mesma coisa para Mad Max: com certeza não seria divertido viver no meio do deserto brigando por água e comida – SEM TOMAR BANHO –, porém a simbiose entre veículos, roupas e demais objetos simplesmente nos desperta uma coceira de pintar o rosto, vestir uma jaqueta de couro e dirigir inalando areia radioativa.
Tron: Legacy é um filme fraco (para ser bem generoso), e ainda assim me dá vontade de ser um pendrive, ou o que quer que aqueles pendrive sejam. O jogo Batman: Arkham Knight não me interessa nem por Batman, nem por Arkham Knight, nem por nenhuma história, e me deixa instigado a visitar Gotham City. Mad Men me desperta o anseio de fumar, beber um old fashioned às 10h37, usar telefones de disco e, pasmem, trabalhar com publicidade.
E ainda temos a caracterização, isto é, a representação das personagens. Naturalmente, a boa caracterização torna suas personagens fascinantes, o que permite nosso envolvimento e/ou identificação. Existe uma razão pela qual Sherlock Holmes é adaptado todo mês (além do domínio público), mas ninguém lembra o nome de um protagonista de um filme do Christopher Nolan2.
Para ficar apenas na literatura policial, Raymond Chandler e James Ellroy são mestres nisso. Ninguém lê Chandler preocupado com o que *vai acontecer*, e inclusive já publicamos uma citação divertida do próprio sobre esse assunto. O Sono Eterno e O Longo Adeus, entre outros, são fascinantes porque contêm personagens peculiares em cenários estimulantes (com ótimos diálogos, aliás).
Décadas depois, Ellroy, um de seus tantos discípulos, nos mantém atentos às suas obras porque sabe criar investigadores terrivelmente pecadores, mas incrivelmente humanos. Seus protagonistas carregam fardos (entregar compatriotas durante a guerra, agredir a esposa enquanto luta pela guarda do filho, reprimir a própria sexualidade), mas avançam conforme lidam com as próprias falhas, sem se resumir exclusivamente a elas.
O oposto dessa combinação de qualidades, sem querer ser implicante, seria uma baboseira como Tenet (2020). Tudo é história, ação cronometrada numa dissecação científica e desprovida de paixão. Enquanto isso, tanto o protagonista (chamado Protagonista, …) como o vilão são as criaturas mais desinteressantes da humanidade. Como os diálogos não ajudam, resta a p**hetação do enredo pelo enredo. O que no máximo sustenta, e no mínimo não marca.
Um filme como John Wick – qualquer John Wick – é infinitamente mais interessante, para não dizer profundo (porque “profundo” não diz nada). Afinal, o protagonista, seus adversários e seus cenários são legais. Ponto. Existe uma magia incrível em qualquer coisa legal, no sentido amplo, raso e banal, porém instintivo de cool mesmo. O primeiro Kingsman conseguiu isso; os outros não.
Ainda no cinema, Quentin Tarantino é um ótimo exemplo disso. Claro, seus filmes também são famosos por diálogo e enredo – mas pense na caracterização. Todas as personagens de Kill Bill, sem exceção, são extremamente cativantes. Isso se repete em Django, Pulp Fiction etc. No seu catálogo, entretanto, há uma joia primordialmente concentrada em caracterização e ambientação. Trata-se de Era uma vez em Hollywood (2019), uma obra-prima proporcionalmente pouco valorizada. Existe ali uma magia incomparável na maneira como o diretor foi capaz de retratar personagens cativantes em um ambiente igualmente instigante. Eles não precisavam *fazer* muita coisa, ou coisa alguma.
Se você se lembra de Twin Peaks quando chega o inverno ou visita uma cabana à noite – ou quando vê um piso preto e branco, quem sabe com uma cortina vermelha –, isso acontece porque a ambientação te marcou. Da mesma forma, a “Log Lady” e o “Man from Another Place” não devem somar cinco minutos de fala ao longo da série, e ainda assim se gravaram no imaginário popular. Como Lynch também conseguiu com o “Mystery Man” de Estrada Perdida. Isso é o efeito da caracterização.
Poderíamos estender esses exemplos infinitamente. Uma ideia não está completamente separada da outra e, ao contrário, é natural que ambientação, caracterização, diálogo e enredo impulsionem um ao outro num círculo virtuoso. Com diálogos pobres é mais difícil tornar um personagem complexo, e assim por diante.
Em que pese o valor inquestionável de um bom enredo e de grandes diálogos3, no entanto, parece-me que nossa relação de afeto sempre será mais forte com o efeito da ambientação e da caracterização, muito em função de seu apelo visual (ou audiovisual). Mesmo que estejamos falando de literatura, com a descrição do ambiente e das personagens. Não *enxergamos* diálogo e enredo, mas enxergamos espaço e pessoas, seja com os olhos, seja projetando a partir da leitura.
Yeah, well, you know, that's just, like, your opinion, man.
BAÚ
Reconheça a alteridade da arte
Gustave Flaubert se perguntou: “Seriam os escritores muito mais que papagaios sofisticados?”. A maioria dos artistas conhece esse sentimento – de que estamos sendo conduzidos por algo alheio a nós mesmos. Todos nós escolhemos nossos estilos, materiais, modos, meios, ferramentas etc., mas a obra que criamos não é inteiramente uma questão de escolhas conscientes. Eu nunca sei bem o que vou escrever até que o escreva – e, ainda assim, não tenho certeza de onde veio o que escrevi. Essa é a alteridade da arte. Ela é tão poderosa que você às vezes pode se perguntar se a arte está nos usando para se reproduzir – se ela seria uma força cósmica autorreplicante (ou um fungo?) que nos colonizou em um serviço simbiótico.
Isso pode ser emocionante, mas também desconcertante. “É como se um fantasma estivesse escrevendo”, disse Bob Dylan, “só que o fantasma me escolheu para escrever a canção”. Não deixe que isso te apavore. Pelo contrário, aprenda a confiar nessa alteridade.
Jerry Saltz. Como ser artista, 2020 (ed. Seiva, 2024).
Como estamos distantes, não? Chegaremos lá, mas sem os visuais bonitos.
“Oppenheimer” não vale!
Não tenho vontade alguma de reassistir à última temporada de Succession. Quase tudo ficou concentrado no fator “o que vai acontecer” a partir de uma pergunta específica. Uma vez respondido isso, o que sobra passa longe de ser ruim, mas é bem menos mágico.
Ótima percepção