Uma não tão breve história do tipo literário
Enclave #130: trecho um tanto longo da tese do editor do RelevO.
Bem-vindo(a) à Enclave #130, a newsletter que deixa para comprar os presentes em 23 de dezembro.
Nossa última edição teve como ponto de partida a melancólica luta entre o youtuber milionário Jake Paul e a lenda Mike Tyson, dois tipos de gerações diferentes, mas dispostos à realização de um embate pitoresco por muito dinheiro – não julgamos.
Hoje, por sua vez, o mote é a própria ideia de tipo. Para tanto, temos uma colaboração1 inédita (!) do editor do RelevO, Daniel Zanella, que faz pesquisas sobre a história do impresso no Brasil e, por esses dias, deve defender a tese sobre uma seção extinta da revista piauí, a “Tipos Brasileiros”.
Antes,
recado 1: a edição de janeiro deve ir para os Correios antes do fim do ano. Para variar, isso depende de conseguirmos pagar a gráfica. Falta pouco, bem pouco. O que nos leva ao…
recado 2: o que acha de encerrar o ano assinando o RelevO? Temos a garantia de que, quem assinar para si ou para presente, ganhará um brinde especial de Natal.
HIPERTEXTO
Uma não tão breve história do tipo literário
Trecho da tese “Humor e representação na seção literária ‘Tipos Brasileiros’ da revista piauí”, a ser defendida em início de 2025.
Na história da literatura, o conceito de tipo desempenha um papel de caracterização de personagens e de estruturação narrativa. O tipo transcende a individualidade, representando generalizações que expressam traços universais ou cômicos. O tipo não se move, o tipo se assenta. O tipo não tem sutileza, circunda o episódico, ajustando-se especialmente a narrativas não dominadas por uma intriga.
A evolução dos tipos literários atende mais a uma necessidade de classificação do que realmente à existência de uma progressão literária, desde sua emergência na literatura grega até suas adaptações contemporâneas, aparecendo em obras de autores que vão de Aristófanes (c. 446 a.C. – c. 386 a.C.) a João do Rio (1881–1921)2.
Os tipos literários se distinguem das personagens individualizadas. Entendemos aqui a noção de personagem como “categoria fundamental da narrativa”, que “evidencia a sua relevância em relatos de diversa inserção sociocultural e de variados suportes expressivos”3. Na narrativa literária, como no cinema, quadrinhos e telenovela, a personagem frequentemente se apresenta como o centro da ação, ao redor da qual a trama se organiza4.
Enquanto as personagens individualizadas são moldadas por particularidades psicológicas e narrativas, os tipos funcionam como encarnações de traços coletivos, sociais ou culturais. E. M. Forster, em Aspectos do Romance (1927), apresenta um conceito que pode hoje ser encontrado no mais simples manual de teoria literária: o de personagens “planas” e “redondas”. Forster define tipos como personagens “planas”, moldadas em torno de uma única ideia ou qualidade, contrastando com as “redondas”, que apresentam complexidade psicológica e evolução narrativa. “Personagens planos eram chamados no século XVII de ‘humours’ e são ora chamados de tipos, ora de caricaturas. Na sua forma mais pura, são construídos ao redor de uma ideia ou qualidade simples”. Lembramos que a etimologia de “humours” faz referência aos fluidos corporais humanos, cada um associado a uma função específica.
Para Forster, as personagens planas desempenham um papel fundamental na narrativa por sua capacidade de gerar previsibilidade e continuidade, sendo memoráveis por sua simplicidade e repetição – ou “redondas, quando construídas ao redor de mais de um fator”. Em contrapartida, como podemos observar, as personagens redondas surpreendem o leitor, sendo mais adequadas à exploração de dilemas internos e transformações pessoais. Entre entusiastas e detratores da tipologia de Forster, “e outros mais, aqueles que preferem aderir ao último modismo – ou seja, que tratam a obra literária com a mesma sofreguidão com que leem as notícias do dia –, a esses, o nome Forster deve soar como marca de cerveja” (Luiz Ruffato, 2003).
A personagem redonda, por suas características complexas, muitas vezes exige procedimentos narrativos específicos, como o uso do monólogo interior. Isso permite que seus conflitos e mudanças sejam expressos em uma temporalidade psicológica, refletindo a profundidade emocional e psicológica da personagem. Essa técnica de focalização interna é uma solução narrativa que ajusta a representação da personagem às suas complexas exigências psicológicas. Vale reforçar que a prosa acadêmica de Forster é especialmente saborosa e colorida. Ao definir que a literatura de Charles Dickens (1812-1870) é formada por personagens planos, nem por isso meramente superficiais, defende que “o romance mais complexo por vezes requer gente plana tanto quanto gente redonda”. Ao tratar de Pip, personagem principal de Grandes Esperanças, e de David Copperfield, ambas de Dickens, sentencia: “Praticamente cada um desses personagens pode ser resumido numa frase, mesmo assim tem-se a maravilhosa sensação de profundidade humana”. Logo depois, ironiza: “a qualquer momento podemos olhar para Mr. Pickwick de soslaio e notar que ele não tem mais relevo do que um disco de gramofone”. Um pouco mais à frente, ele chamará H.G. Wells de agitador de personagem.
Na sequência, ainda sobre o gênio de Dickens, Forster ressalta um paradoxo fascinante em sua obra, repleta de personagens marcantes, tipos e caricaturas. Esses tipos são figuras estereotipadas ou exageradas, fáceis de reconhecer por suas características repetitivas. Por exemplo, Ebenezer Scrooge, em Um Conto de Natal, representa o avarento, enquanto Mr. Micawber, em David Copperfield, é o eterno otimista despreocupado.5
No mesmo ideário, vale o acréscimo da divisão de Massaud Moisés, presente em Dicionário de termos literários (2004). “Dividem-se em: tipos, quando a peculiaridade alcança o auge sem causar deformação, como o Conselheiro Acácio (O Primo Basílio) ou José Dias (Dom Casmurro), e caricaturas, quando a qualidade ou ideia única é dilatada ao extremo”. A distorção a serviço da sátira pode ser vista em Ernestinho, “do mesmo romance queirosiano, retrato hilariante do poeta romântico descabelado e piegas”.
O tipo literário pode tanto prevalecer em certos gêneros quanto parecer ausente em outros, dependendo do nível de individualização das personagens. No romance moderno, a personagem pode se transformar ao longo da trama, acompanhando as incertezas do mundo. Essa transformação é supostamente vista como reflexo da fluidez e da indeterminação típicas das sociedades modernas, onde os indivíduos não teriam destinos fixos, mas estariam em constante construção. No romance, os protagonistas carregam dilemas que os conectam a temas universais, como liberdade e identidade, mas também enfrentam conflitos próprios de seu contexto social, revelando as tensões entre o coletivo e o pessoal.
As noções de personagens planos e personagens redondos de E.M. Forster, embora úteis, apresentam alguns problemas e limites. Carlos Reis (1988) defende que a distinção personagem plana-personagem redonda envolve riscos se for encarada de forma rígida. “Num universo diegético não se verifica forçosamente essa repartição esquemática, observando-se por vezes que certas personagens oscilam entre a condição da personagem plana e a da redonda”.
De fato, a classificação definitiva de uma personagem como “plana” pode desconsiderar a evolução ou as nuances que ela pode apresentar ao longo da narrativa. Mesmo personagens aparentemente simples ou unidimensionais podem revelar complexidade em contextos específicos. Além disso, as personagens redondas podem se tornar excessivamente ambíguas ou indefinidas, o que pode dificultar a clareza da narrativa, transformando-as em figuras simbólicas ou metafóricas que podem ir além da experiência humana concreta, como é o caso de Capitu em Dom Casmurro, o que pode tornar sua interpretação mais subjetiva e aberta a múltiplas leituras. Portanto, essas categorias podem ser vistas como redutoras e não totalmente aplicáveis a todas as narrativas, especialmente em textos mais modernos ou experimentais, onde as fronteiras entre tipos de personagens são frequentemente mais fluidas e menos definidas.
Henry James, que em A Arte da Ficção parte da perspectiva do autor que levanta um mundo ficcional e planeja a extração de um modelo, declara que “a província da arte é toda a vida, todo o sentimento, toda observação, toda visão”. Ele enfatiza que a experiência sensível do escritor é essencial para a criação de personagens. Assim, a seleção de elementos da realidade deve ser cuidadosa, evitando sobrecarregar a narrativa com detalhes irrelevantes. “A arte é essencialmente seleção, mas é uma seleção cuja preocupação fundamental é ser típica, ser inclusiva”. Essa seleção cuidadosa reflete o esforço do escritor em capturar o modelar, a substância de uma situação ou personagem, criando um retrato que é ao mesmo tempo específico e universal. Assim, para James, o sucesso da narrativa está na habilidade de equilibrar autenticidade e simplicidade.
A extração do modelo de Henry James é importante para a pesquisa sobre tipos porque introduz a ideia de que as personagens literárias não são apenas construções estáticas ou planas, mas refletem um processo complexo de desenvolvimento interno e relação com o contexto narrativo. Os personagens podem ser analisados como entidades dinâmicas que incorporam tanto individualidade quanto aspectos representativos da sociedade ou do momento histórico. Essa perspectiva amplia o entendimento sobre os tipos literários, mostrando que, mesmo quando desempenham papéis representativos, os tipos podem carregar nuances e profundidade que contribuem para a riqueza da obra. Assim, o modelo de James permite conciliar a ideia de personagens como “tipos” com a possibilidade de maior densidade psicológica, tornando o conceito mais flexível e útil para abordagens literárias contemporâneas.
Temos, a partir de James, um exemplo prático de uma romancista que usou uma observação casual de jovens protestantes franceses para criar personagens detalhados e convincentes. Vemos, ali, como uma breve observação pode ser transformada em uma rica representação literária. A escritora exemplificada por James, ao passar rapidamente por uma cena em Paris — jovens protestantes reunidos após uma refeição —, capturou, em um único instante, elementos que alimentaram sua imaginação. A breve experiência visual tornou-se uma “pintura” mental, utilizada para criar uma narrativa convincente e detalhada. “Ela teve uma impressão pessoal direta e extraiu seu modelo. Sabia que juventude era aquela, e que protestantismo; também tinha a vantagem de ter visto o que era ser francês, de modo que ela converteu essas ideias numa imagem concreta e produziu uma realidade”.
György Lukács, em contraste com James, explora a tipificação no contexto do romance histórico, localizado em dois momentos: no romance social do século 18 (Henry Fielding, Jonathan Swift, William Thackeray) e na nova percepção da história que surge na Europa transformada pela Revolução Francesa. Em O Romance Histórico (2011), ele argumenta que as personagens devem expressar a totalidade das tensões sociais e históricas, mesmo que representem apenas um segmento específico da realidade. “Diz, por exemplo, que todas as heroínas de Walter Scott, com raras exceções, representam o mesmo tipo de mulher inglesa filistinamente correta e normal”. A obra, então, revelaria os mecanismos mais ou menos ocultos da realidade social.
Aqui, o romance histórico seria capaz de revelar as contradições de uma época ao conectar experiências individuais a processos sociais mais amplos. A tipificação, nesse contexto, é uma ferramenta para tornar essas conexões mais acessíveis ao leitor. Também por isso, os tipos emergem gradualmente. A interação entre personagens e seu ambiente social define sua tipicidade, que é construída ao longo da narrativa e atinge seu clímax no confronto de ideias e valores.
Lukács (2011) cita escritores como Walter Scott e Balzac como exemplos no uso de tipos literários, com maior ênfase ao papel de Balzac: “é o escritor que desenvolveu da maneira mais consciente o impulso que Walter Scott deu ao romance, criando assim um tipo superior e até então inédito de romance realista”. Em Balzac, o tipo literário aparece como o “homem médio”, que encarna aspectos positivos e negativos de um movimento histórico, integrando forças distintas na narrativa.
Interessante notar como Lukacs aborda o ponto de vista de Aleksandr Púchkin, poeta, escritor e dramaturgo russo da Era Romântica, de que o dramaturgo popular tem uma liberdade de movimento muito maior em relação a seu material e a seu público que o dramaturgo palaciano, “que, na realidade ou em sua imaginação, escreve para um público social e culturalmente superior a ele”.
É uma perspectiva que se aproxima quase sem querer do tipo popularesco e carnavalizado de Mikhail Bakhtin, que define tais conceitos em A cultura popular na Idade Média e no Renascimento (1981), invertendo valores e hierarquias. Assim, apesar dessa problemática na concepção da relação entre o drama e a história – que beira a caricatura –, “não se pode omitir o fato de que esses poetas procuraram o que era realmente dramático, o contato imediato com seu tempo, o caráter diretamente público do drama”.
Na tradição clássica, os tipos eram frequentemente empregados para fins didáticos ou cômicos, em busca da reflexão social e moral por meio de sua previsibilidade e universalidade. Aristófanes, em sua obra, utilizava tipos para satirizar a política e os costumes de sua época, destacando figuras como o demagogo e o cidadão preguiçoso. Partindo de um princípio aristotélico, Milton Luiz Torres, em A impostura em Aristófanes, define que “A ‘caracterização do personagem’ (êthos) precisa ser ‘boa’ (chrêston), ‘apropriada’ (harmottonta), ‘consistente’ (homoion) e ‘consequente’ (homalon)” (2014, p. 24).
Os personagens devem, portanto, seguir quatro critérios de adequação: serem compatíveis com sua classe social (como um operário agindo como um operário), com seu tipo (como uma mulher demonstrando a coragem esperada para mulheres), com a realidade (agindo de forma verossímil) e com sua própria personalidade (mantendo coerência com as motivações previamente estabelecidas). Triste sina do tipo: ele é escravo de sua configuração.
E são vários os tipos que passam por Aristófanes. Temos o bufão, um tipo cômico, frequentemente grosseiro e engraçado; o rústico, que representa o oposto do bufão, com traços mais simples e reservados; a heroína muda, figura que acompanha o herói em seu triunfo cômico; o escravo espertalhão, astuto e engenhoso; o velho impetuoso, geralmente vigilante, como o pai zeloso; o soldado fanfarrão, presunçoso e exagerado; o erudito pedante, figura cômica marcada pelo excesso de conhecimento e arrogância. É um desfile de personagens atrelados ao seu limite, que alcança o auge em Lisístrata – A Greve do Sexo, a primeira peça feminina de Aristófanes e especialmente obscena, uma comédia de contexto bem específico. A Grécia, depois de derrotar os persas nas chamadas Guerras Médicas, disputou inúmeras lutas entre as próprias cidades gregas, as chamadas guerras do Peloponeso (431 a. C. a 404 a.C.). A protagonista, Lisístrata, lidera um grupo de mulheres atenienses e espartanas, que, cansadas da guerra, decidem unir forças para forçar seus maridos a terminar o conflito a partir de uma estratégia peculiar: privar os valentões de sexo. Temos, a partir deste mote, um incrível desfile das baixezas humanas, sobretudo masculinas.
A transição do mundo clássico para a Idade Média trouxe mudanças significativas na estrutura social, na cultura e na literatura. Os tipos literários passaram a refletir não apenas os conflitos e as características humanas universais, mas também as transformações decorrentes do declínio do Império Romano, do surgimento do feudalismo e do aumento da influência religiosa. É nesse contexto de renovação e tensão que emergem autores como Giovanni Boccaccio. Decamerão (1353) captura a essência de uma sociedade em mudança, inaugurando novos caminhos para a representação dos tipos literários na literatura ocidental. Entre os novos tipos sociais emblemáticos, destacam-se o clérigo corrupto, símbolo da hipocrisia e da decadência moral da Igreja; a mulher esperta, que desafia as limitações patriarcais com inteligência e artimanhas; e o mercador trapaceiro, representante da burguesia nascente e sua ganância. Essas narrativas, ambientadas durante a Peste Negra, expõem o comportamento humano em situações de crise, ao mesmo tempo em que satirizam e humanizam seus personagens.
Em Miguel de Cervantes, Dom Quixote (1605 e 1615) inaugura uma nova era na literatura ao subverter os tipos medievais e explorar as complexidades psicológicas dos personagens. Dom Quixote, o cavaleiro idealista, encarna a tensão entre os ideais heroicos e a dura realidade. Ele é ao mesmo tempo ridículo e inspirador, representando a luta do ser humano por um significado maior, mesmo que baseado em fantasias. Seu companheiro, Sancho Pança, é o contraponto pragmático, mas longe de ser apenas um simples realista: ele traz a sabedoria popular e uma visão mais equilibrada da vida, que ressoa com o “homem comum”. A narrativa é povoada por enganadores e enganados, personagens que utilizam ou sucumbem às ilusões de Quixote, refletindo as dinâmicas de poder e sobrevivência em uma sociedade fragmentada. Cervantes transforma a jornada picaresca em um atestado de viagem sobre a condição humana.
Molière, com suas comédias de costumes, sintetiza defeitos humanos universais em tipos literários que são, ao mesmo tempo, caricaturas e reflexos profundos da sociedade francesa do século 17. Em Tartufo (1664), introduz o hipócrita religioso, uma figura manipuladora que se aproveita da fé alheia para obter poder e benefícios, expondo a corrupção moral que permeia tanto o clero quanto a sociedade secular. O Avarento (1668) traz Harpagão, o arquétipo da obsessão pelo dinheiro, que sacrifica relações humanas e emoções em prol da acumulação de riqueza. Já O Burguês Fidalgo (1670) apresenta Monsieur Jourdain, o burguês ridículo que aspira a imitar os nobres, escancarando as vaidades e pretensões da classe emergente.
Jonathan Swift, em As Viagens de Gulliver (1726), adota uma abordagem alegórica e satírica para criar tipos literários que funcionam como espelhos distorcidos das falhas humanas. O político corrupto, representado pelos liliputianos e suas disputas mesquinhas, é uma crítica incisiva à política inglesa de sua época. O cientista descolado da realidade, encontrado em Laputa, simboliza a desconexão entre o saber acadêmico e as necessidades práticas da humanidade. Os Yahoos, em contraste, são a personificação da brutalidade e dos instintos mais baixos do homem, expondo a tensão entre racionalidade e selvageria.
Laurence Sterne, em A Vida e Opiniões do Cavalheiro Tristram Shandy (1759–1767), leva a experimentação literária a novos patamares, rompendo com os tipos tradicionais e criando personagens fragmentados e excêntricos. O narrador caótico, Tristram Shandy, desconstrói a própria ideia de linearidade narrativa, satirizando o ato de contar histórias ao encher sua narrativa de digressões e reflexões – aqui novamente temos o ideal de carnavalização de Bakhtin para o rompimento dos limites na literatura. O filósofo obcecado, tio Toby, fixado em guerras e estratégias, é um tipo que combina o cômico e o melancólico, refletindo a futilidade do intelecto desconectado das emoções. Walter Shandy, pai de Tristram, é o homem metódico que busca controlar o imprevisível, uma figura que simboliza o fracasso de impor ordem em um mundo caótico. Sterne utiliza esses tipos para criar uma obra que reflete o espírito experimental e questionador do Iluminismo, ao mesmo tempo que humaniza as imperfeições de seus personagens. É um autor que irá influenciar sobremaneira Machado de Assis.
O russo Nikolai Gogol, em Almas Mortas (1842), une a essencialidade épica ao risível ao apresentar tipos que refletem a corrupção e a inércia moral da sociedade russa do século 19. É uma espécie de A Divina Comédia exagerada e grotesca. A abertura já é um exercício de tipificação: “De par em par, abriu-se o portão de uma hospedaria de capital de distrito [...], um desses cochezinhos usados por solteirões, comandantes e capitães de reserva, fazendeiros, donos de uma centena de servos, em suma, todos os chamados ‘nobres da classe média’”. O anti-herói Tchichikov, com seu plano de comprar “almas mortas” (servos falecidos que ainda constam no censo para transações fiscais), é o tipo oportunista, que encarna o vazio moral e a ganância, explorando falhas do sistema. Temos ainda tipos como o idealista inútil (Manílov) e Nozdriov (o tipo impulsivo, briguento). São tipos que refletem as complexidades e os vícios da Rússia czarista, expondo a ambição, a burocracia e a apatia moral.
No Brasil, destacamos dois autores. Martins Pena, dramaturgo e humorista, é reconhecido como um dos principais nomes do teatro de comédia no país. Sua obra dialogava com o contexto do século 19, marcado pelas transformações sociais do período imperial. Mesmo com uma carreira curta, devido à sua morte precoce aos 33 anos, Pena escreveu cerca de 28 peças, muitas delas consideradas marcos fundamentais para o desenvolvimento do teatro nacional. Ele é amplamente reconhecido como o criador da comédia de costumes no Brasil e mestre na construção de tipos sociais. Sua obra capturava com agudeza e humor as idiossincrasias da classe média urbana e dos tipos populares da época, apresentando um retrato crítico e divertido da sociedade brasileira. Entre os principais tipos encontrados em sua obra, destacamos o espertalhão ou malandro, que representa o indivíduo astuto, que tenta tirar vantagem de situações, geralmente em busca de ascensão social ou ganhos pessoais. Este tipo aparece, por exemplo, em O Noviço (1845), onde o personagem Ambrósio tenta manipular e explorar a herança de uma jovem órfã. Temos o aristocrata pretensioso, ridicularizado, o tipo que tenta manter as aparências de nobreza ou refinamento, mesmo sem os meios financeiros ou culturais para sustentar tal posição. Também vemos o caipira, representando o homem do interior, frequentemente retratado como ingênuo, mas que, ao longo da trama, pode demonstrar sabedoria prática. Em peças como Os Irmãos das Almas, Martins Pena explora a tensão entre o homem rural e o urbano.
Então, temos João do Rio no início do 20 brasileiro, o século da motorização. Homem de muitos nomes, ironicamente nascido na Rua do Hospício, na então capital brasileira, foi ele próprio um personagem marcante da Belle Époque, um esteta que desafiava convenções e apreciava a provocação, emulando Oscar Wilde e Charles Baudelaire, sobretudo a figura do flâneur – que, com seu foco móvel, não se fixa em nenhum espaço, executando uma visão em movimento. Com uma vocação natural para o Jornalismo, era um repórter de rua, embora visse a empresa jornalística como fonte disseminadora de ilusão. “Vai-se a uma dolorosa festa popular. No outro dia os jornais asseguram que a festa foi um deslumbramento, com duzentas mil pessoas e uma passeata feérica. [...] No dia seguinte os papeis impressos asseguram tanta coisa que a gente duvida de lá ter estado”.
Mais cronista do que repórter, narrador-repórter, na definição de Gens e Oliveira (2012), suas crônicas buscavam elevar o gênero a uma posição de destaque e influência, e seu texto capturava o espírito excludente do progresso, representado pelo cinema e o automóvel, e, mesmo com os ornamentos literários, certos francesismos e adaptações ao ritmo frenético da vida urbana, introduziram uma revolução no gênero.
A alma encantadora das ruas foi publicado em 1908, reunindo textos da Gazeta de Notícias e da revista Kosmos, editada por Olavo Bilac. Na rua de João do Rio desfilam os mais diversos tipos urbanos, dos ciganos aos engraxates. Em “Os tatuadores”, o autor explora a prática da tatuagem, na época vista como um fenômeno marginal e até exótico, ligado a determinados grupos sociais, associado às camadas mais pobres da população ou a marinheiros e trabalhadores manuais. “– Quer marcar? Era um petiz de 12 anos talvez. A roupa em frangalhos, os pés nus, as mãos pouco limpas e um certo ar de dignidade na pergunta”.
Não deixa de ser interessante como, em pouco mais de um século, um tipo se renova e é atualizado. A tatuagem atual é adotada por celebridades, atletas, músicos e influenciadores digitais, que a usam como forma de expressar identidade ou estilo pessoal. Isso contribuiu para a popularização da prática e consequente aceitação social em diferentes estratos, em um movimento comum de apropriação da estética do pobre pelo rico – associado ao poder, ao privilégio e à distinção social – ou pelo estabelecido, afinal, o estabelecido não quer ser visto como parte de uma elite desconectada, mas sim como alguém com autenticidade, histórias e um “lado humano” que o aproxime das massas. Essa apropriação reflete um padrão histórico: práticas e símbolos que originalmente pertenciam a classes populares, muitas vezes marginalizadas, são incorporados por classes mais altas quando ganham um status de tendência ou passam a ser reinterpretados como “cool” ou “rebeldes” de forma aceitável. Quando o fenômeno se solidifica, é apropriado pela classe média, que vê nele uma oportunidade de acesso simbólico ao estilo, às modificações e ao status associado às elites. Esse processo cria um ciclo onde o que era execrável se torna contracultura e depois se transforma em mainstream, diluindo parte de seu significado original para se adequar a uma lógica de consumo. O tatuador também segue um tipo, embora reconfigurado pelas mudanças culturais e sociais em torno da profissão.
Colaboração talvez seja um termo forte, mas é aquilo: “a utopia de cada qual é encontrar um ouvinte”! Cortamos todas as referências, para o bem do leitor. Ao contrário da [superestimada] academia, na Enclave acreditamos na palavra do autor. Aqui, o formato ideal de referência é “acho que li em algum lugar alguma vez”.
Entre eles, Giovanni Boccaccio (1313–1375), François Rabelais ( 1483/1494–1553), Miguel de Cervantes (1547–1616), Molière (1622–1673), Jonathan Swift (1667–1745), Henry Fielding (1707–1754), Laurence Sterne (1713–1768), Nikolai Gogol (1809–1852), Martins Pena (1815–1848).
Conforme a definição de Carlos Reis e Ana Cristina M. Lopes em Dicionário de Teoria da Narrativa (1988, p. 215).
Trecho suprimido: “Embora existam narrativas que desafiam a tradicional centralidade da personagem, propondo uma figura mais indefinida e quase invisível, refletindo um “eu” anônimo ou um reflexo do próprio autor – como [OS CHATOS EGOCÊNTRICOS] na autoficção”.
Na luta melancólica entre Paul e Tyson, por exemplo, o youtuber vestiu o tipo do jovem petulante, ao passo que Tyson seria o herói em seu último ato.
Ao ler o texto e vendo meus papéis impressos com contos, crônicas e romance chego a duvidar que conseguisse escrever se tivesse a obrigação de pensar em tudo isso. E a duvidar ainda mais que, depois de ir a essa dolorosa festa literária, estivesse com algum livro pronto.
Obrigado pelo texto e reflexões sobre tipos e personagens.