Napoleão do crime (parte 2)
Enclave #81: Adam Worth; Vladimir Nabokov; Brazil, por Terry Gilliam.
EDITORIAL
Bom dia,
Esta é a edição #81 da Enclave, a newsletter que puxa conversas com "eu não assisto BBB, mas...", hoje entregando a segunda parte do texto iniciado semana passada.
Afinal, na última edição da Enclave (#80), apresentamos Adam Worth, o maior criminoso do século 19. O texto continua nesta edição.
A edição de março do Jornal RelevO já foi enviada. Na página impressa e especialmente diagramada da nossa newsletter, relembramos Castor de Andrade.
A edição de fevereiro do RelevO, incluindo página especial da Enclave, está disponível em nosso site.
HIPERTEXTO
Adam Worth, Napoleão do crime (PARTE 2)
Na parte 1, começamos a narrar as peripécias de Adam Worth pautados pelo livro O Napoleão do Crime (1997), de Ben Macintyre.
Hoje, acompanharemos Henry J. Raymond, a identidade abraçada por Worth após deixar os Estados Unidos e rumar à Europa, em 1869. Se você tem a sensação de já ter ouvido esse nome em algum lugar, é porque Henry Jarvis Raymond (1820-1869) foi um dos fundadores do New York Times. A nova alcunha de Worth, portanto, já partia de uma piada com o recém-falecido – e homem ilustre da época.
Adam Worth e Piano Charley (agora Charles H. Wells), literalmente parceiros em crime, desembarcaram em Liverpool para morar no hotel Washington, onde se interessaram (ambos!) por uma funcionária do bar.
A irlandesa Kitty Flynn, uma ambiciosa jovem de origem pobre, passaria anos envolvida num triângulo amoroso que pareceu funcionar muito bem a um trio eternamente descolado dos padrões éticos ou morais vigentes. Em Liverpool. Worth roubaria as joias de uma loja de penhores após distrair o dono e copiar sua chave em cera. Moleza.
Ansioso, o trio se moveu para Paris no final de 1870, durante a Guerra Franco-Prussiana, onde (e quando) "uma mulher podia ser presa por fumar nos jardins das Tulherias, porém a imoralidade pessoal era quase de rigueur. A superfície era magnífica, mas a corrupção e a libertinagem desregradas".
Lá, o trio abriu um bar, cuja engenhosidade era tão cinematográfica que merece ser detalhada:
"O American Bar era uma operação dupla. O segundo andar do prédio foi transformado numa espécie de clube para norte-americanos em visita à cidade, completo com as últimas edições dos jornais dos Estados Unidos e escaninhos de onde os expatriados podiam apanhar sua correspondência. (...) Nos andares superiores da casa, entretanto, a cena era bem diferente. Ali Worth e Bullard montaram uma operação de jogo em grande escala, bem equipada e totalmente ilegal. Importando crupiês dos Estados Unidos e especialistas em bacará, deram ao covil um lustro cosmopolita, mas foi Kitty quem acabou sendo a principal atração, porque 'sua beleza e seus modos cativantes atraíam muitos visitantes norte-americanos' (...).
Havia um botão de alarme discreto, instalado atrás do bar, 'que o barman apertava, tocando uma campainha nos salões de jogos acima sempre que a polícia ou qualquer pessoa suspeita entrasse'. Segundos depois de ter soado o alarme, Worth podia apresentar os andares superiores do número 2 da rue Scribe de forma tão calma e respeitável quanto os inferiores."
O ambiente, hoje um dos hotéis mais caros de Paris, funcionou por três anos, durante os quais a dupla mantinha roubos esporádicos (de diamantes, por exemplo) e o trio galgava espaço na nobreza local. Quando começaram a dar bandeira de suas atividades paralelas, os três venderam o bar e zarparam para Londres.
"Henry Raymond", "Charles Wells" e Kitty Flynn se estabeleceram no Western Lodge, uma bela mansão onde Worth atingiria sua maturidade picareta e se converteria num verdadeiro líder do submundo, sempre marchando conforme a própria batida.
Personagem de traços peculiares – "orgulhava-se de um regime pessoal severo, abstinha-se de bebidas fortes, levantava-se cedo, trabalhava duro na profissão escolhida, fazia donativos às instituições de caridade, talvez até frequentasse a igreja e, ao mesmo tempo, quebrava todas as leis que pudesse encontrar e enriquecia-se com a riquesa dos outros" –, ali se concretizava o Napoleão do crime.
"Usando seus associados de maior confiança, ele distribuía serviços criminosos, em geral em bases contratuais e através de outros intermediários, para homens (e mulheres) selecionados do submundo de Londres. Os vigaristas que executavam os trabalhos sabiam apenas que as ordens eram passadas de cima para baixo, que os lucros eram bons, o planejamento impecável e que os alvos – bancos, caixas de estações ferroviárias, residências de indivíduos ricos, correios, armazéns – eram selecionados pela mão de um grande mestre. O que eles nunca ficavam sabendo era o nome do homem no topo, nem mesmo o daqueles no meio da pirâmide de comando que Worth estruturara. (...) Worth estava praticamente imune (...). Sempre fanático pelo controle, Worth estabeleceu sua própria forma de omertà por força de sua personalidade, de sua rígida atenção aos detalhes, de sua supervisão severa mas sempre anônima de todas as operações e do gasto de uma proporção de seus lucros para garantir, se não a lealdade, pelo menos o silêncio. (...)
Sóbrio, trabalhador e leal, Worth era um criminoso de princípios, os quais impunha a sua quadrilha com disciplina rígida. Com exceção de Piano Charley, os bêbados eram excluídos e a violência terminantemente proibida. 'Um homem com cérebro não tem o direito de carregar armas de fogo', ele insistia."
Nesse contexto, Adam Worth roubou a Duquesa de Devonshire, tela de Thomas Gainsborough que você vê na abertura deste texto, em 1876. A duquesa havia sido perdida por décadas, então foi reencontrada, depois adquirida por William Agnew – o maior preço já pago por uma pintura, à época – e exposta na galeria do comprador na Old Bond Street, para deleite do público. O quadro já era objeto de disputa entre os Rothschild e os Morgan nos Estados Unidos.
Desesperando todos eles, de madrugada, Worth/Raymond subiu pela frente da galeria com auxílio de um capanga e se apoiou no parapeito da janela. Tudo isso enquanto o vigia dormia (bons tempos...).
Com um pé-de-cabra, forçou o batente da janela e entrou. Cortou o retrato da moldura com uma lâmina, enrolou-a cuidadosamente e saltou nos ombros de seu assistente para sumir com a duquesa e causar um alvoroço sem precedentes.
O quadro permaneceria com o Napoleão do crime por 25 anos, durante os quais ele a levaria em suas inúmeras viagens. Nesse período, Worth/Raymond, cada vez mais a figura viva da duplicidade, criaria uma enorme obsessão pela duquesa e se envolveria em uma negociação extremamente peculiar para devolvê-la.
Mas este texto já se estendeu muito: os detalhes, somados ao desfecho de Adam Worth e às suas influências na (Mori)arte, estão todos lá n'O Napoleão do Crime (1997), que obviamente recomendamos.
BAÚ
Nabokov: esfera entre círculos
Em qualquer era que Sebastian tivesse nascido, ele ficaria igualmente divertido e infeliz, alegre e apreensivo, como uma criança numa pantomima de vez em quando pensa no dentista de amanhã. E a razão de seu desconforto não era que ele fosse moral numa era imoral, ou imoral numa era moral, nem era a sensação paralisante de sua juventude não florir com a naturalidade suficiente num mundo que era uma sucessão muito rápida de funerais e fogos de artifício; era simplesmente a sua consciência de que o ritmo de seu ser interior era tão mais rico do que o de outras algumas. Mesmo então, bem no final de seu período em Cambridge, e talvez antes também, ele sabia que seu menor pensamento ou sensação tinha sempre pelo menos uma dimensão a mais do que os de seus vizinhos. Ele podia ter se vangloriado disso se houvesse qualquer coisa melodramática em sua natureza. Como não havia, só lhe restava sentir a estranheza de ser um cristal entre vidros, uma esfera entre círculos (mas tudo isso não era nada comparado ao que ele experimentou ao finalmente mergulhar em sua tarefa literária).
Vladimir Nabokov, A verdadeira vida de Sebastian Knight, 1941 (Ed. Alfaguara, 2010).
AMARCORD
Brazil, por Terry Gilliam
Publicado originalmente na edição #16, em julho de 2015.
Para entendermos por completo essa peculiar página, vale a pena contextualizá-la. Conforme anuncia a assinatura, seu autor é Terry Gilliam, consagrado como membro do Monty Python.
Enquanto integrante do grupo de comédia, ele também codirigiu o filme Monty Python: Em Busca do Cálice Sagrado (1975) com Terry Jones. No começo de 1985, pois, Gilliam lançou seu filme Brazil1 na Europa. Não à toa, o filme é altamente inspirado por 1984, de George Orwell.
Quem já assistiu à obra, cujo elenco reúne Jonathan Pryce, Robert De Niro e até Michael Palin, tem ideia de que o final da película é no mínimo atípico. Somado ao fato de conter mais de 140 minutos de duração, seu desfecho não agradou nada aos distribuidores norte-americanos da Universal, que atrasaram o lançamento de Brazil.
Sid Sheinberg, diretor da companhia, queria revisar o longa-metragem até que esse totalizasse 90 minutos e oferecesse um final mais positivo.
Sendo assim, Terry Gilliam, com seu trabalho já rodando a Europa e sem previsão de lançamento nos EUA – mais de um semestre havia se passado –, desafiou a Universal de duas maneiras. Primeiramente, questionou Sheinberg por meio da página acima, um anúncio comprado na revista Variety.
A resposta do ricaço, claro, não foi nada positiva: "se o filme é tão bom em sua forma atual, arranje outra pessoa para comprá-lo". Ele considerava a película totalmente desprovida de potencial comercial.
E então, para enfrentar os distribuidores na prática, Gilliam simplesmente exibiu o longa-metragem diretamente para a associação de críticos de Los Angeles, sem autorização alguma para tal. E o filme começou a ser premiado. Reiteramos: sem ter sido lançado.
A Universal se rendeu diante do contexto bizarro, liberando uma edição de 132 minutos supervisionada por Gilliam. E o lançamento, aliás, de fato conquistou um prejuízo de milhões nos Estados Unidos.
O título Brazil remete à 'Aquarela do Brasil', de Ary Barroso. A música, regravada por Geoff Muldaur, conduz o longa-metragem em vários momentos.