Quando profanamos o Guga
De labrador a pitbull: o dia em que Gustavo Kuerten perdeu a cabeça.
Nesta newsletter, resgatamos textos publicados no Jornal RelevO e já devidamente esquecidos. Dessa vez, temos uma historinha que começa em 2020.
Como vocês sabem, o RelevO costuma receber ótimas cartas de seus leitores e/ou detratores. A seção de recados é, sem dúvidas, uma das mais interessantes do Jornal. Pois bem, em janeiro de 2021, recebemos a seguinte mensagem:
Sim, chegou o jornal de vocês… Porém me chamou a atenção o seguinte. Primeiramente, o meu interesse era de publicar o material que enviei para vocês. Caso isso não fosse possível, não precisava enviar qualquer outra edição, pois, quando chegou [o jornal que o próprio autor solicitou], achei que haviam publicado o meu material. Segundo: já que enviaram mesmo assim, resolvi ler e, me perdoe a sinceridade, detestei. O tal jornal trazia uma matéria esdrúxula (e eu diria até ofensiva) sobre o Gustavo Kuerten (o Guga). Saibam que o Guga, aqui em Florianópolis (e no Brasil), é muito querido e, por isso, qualquer continho desse tipo não pega nada bem. Extremamente desnecessário e desrespeitoso. A matéria sobre o Guga evidenciou a arrogância de alguém que pensa que escreve com criatividade elevada. Terceiro: a matéria é tão ruim que simplesmente acaba quando a folha do “jornal” acaba. Parece que a pessoa que estava escrevendo foi assassinada pelas costa [sic] enquanto escrevia aquela “obra-prima da literatura tupiniquim”. O exemplar (que não é exemplo de nada) será enviado para a casa de Gustavo Kuerten. Vamos ver se ele vai achar bom, engraçado, criativo ou qualquer outra coisa que eu não tenha visto. Contratem um bom editor e pessoas que saibam e amem escrever, aí, quem sabe, as coisas melhoram. Atenciosamente.
Como qualquer brasileiro que se preze, vale deixar claro: nós amamos Gustavo Kuerten, o Guga. Essa rara mistura de talento, sucesso e carisma genuíno não surge todo dia. Mas o que poderíamos ter feito para gerar tamanha indignação do leitor (que, para surpresa de alguém que não a gente, queria tão somente ser publicado)?
Pois bem, nas centrais da edição de setembro de 2020 – aquela em que tentamos nos vender à Red Bull (sem sucesso) –, brincamos com a ideia de converter um anjo num verdadeiro lixo humano. E assim chegamos justamente em Gustavo Kuerten, “um raro ícone de paz, respeito e admiração num país ininterruptamente chiliquento”. O resultado é o texto abaixo.
Curiosamente, o leitor-assessor-do-Guga tem um ponto: de fato, conseguimos publicar a edição com um erro de impressão no último parágrafo, corrigido aqui.
Nenhum Kuerten entrou em contato para nos ofender ou ameaçar (outro atestado de nossa irrelevância), mas apostamos que ele levaria a piada numa boa.🙏DE LABRADOR A PITBULL: o dia em que Gustavo Kuerten perdeu a cabeça
Surto, revelação ou falta de assessoria? Guga choca o país ao derrubar tudo aquilo que pensávamos a respeito dele. Ex-tenista promete desconquistar o mundo.
FLORIANÓPOLIS (SC) — “Prefiro cortar minhas bolas e costurá-las no meu c*”. Gustavo Kuerten acaba de ser convidado para participar do programa da Fátima Bernardes, e sua voz é seca, exalando a rouquidão típica do excesso de whisky. Depois de oito minutos, o ex-tenista parece reconhecer que a equipe do Jornal RelevO se sentou à mesa do mesmo restaurante “que aquele cara do Madero emprestou o nome e a inflação”. “Tão olhando o quê? Marquei uma exclusiva com o TV Fama. Cadê meu assessor?”, ele indaga. Hesitante, um garçom responde: “você acabou de demiti-lo, sr. Guga”. O silêncio súbito impera. “Falei com você, pardinho?”.
O ar parece rarefeito, tamanha a dificuldade de todos respirarem – exceto Kuerten, que bafora um narguilé sobre a mesa. Abismado pela injúria racial explícita, outro garçom ameaça empalar o ex-atleta com uma raquete, mas o primeiro funcionário ameniza. “Relaxa, gravei tudo”. Eles voltam para a cozinha, aparentemente satisfeitos.
Satisfeita também está a equipe do RelevO, que fingiu representar o TV Fama, da Rede TV. “Sim, sim, isso vai tudo pro Léo Dias”. “Então tá”, Guga assente, desinteressado demais para desconfiar. Através da janela ele observa o Gol Bola 94 da redação estacionado do outro lado da rua, então arqueia as sobrancelhas. “É de vocês? Não senti cheiro de classes C e D aqui”. O RelevO se vê forçado a mentir novamente.
Guga dispensa apresentação – mas não hoje. Respeitando a quarentena até dizer literalmente chega, “f**a- se a quarentena, e f**a-se a China também; nunca ganhei torneio lá”, Gustavo Kuerten resolveu repaginar sua imagem pública. Está cansado de ser o ex-tenista carismático e inofensivo, que critica pouco os dirigentes, arranca sorrisos de Galvão Bueno e costuma ser tachado de labrador humano, um raro ícone de paz, respeito e admiração num país ininterruptamente chiliquento.
“Irmão, eu cansei, só isso. Tô há mais de quarenta anos sorrindo; chega. Pra mim que se f**a. Com as pedras que nunca me atiraram eu não construí castelo algum, então agora sobrou muito espaço pra eu encher de pedra e tacar em todo mundo”, ele pondera, trafegando entre a lucidez e um possível delirium tremens. “A galera gosta de mim porque eu sou simpático e tenho cabelo cacheado. Por isso eu fiz esses dread; ninguém suporta um branco de dread” – pela primeira vez, parece haver consonância entre os interlocutores do recinto. Da cozinha, ouve-se um “pode crer”.
“Essa parada de labrador humano me encheu o saco, cara. Inicialmente eu tinha decidido não ser labrador, mas curti a ideia e agora pretendo me manter nessa linha desumana até ser preso ou assassinado. Liguei pro Felipe (Melo), um cara que (agora) admiro muito, e ele passou a me orientar. De labrador a pitbull: a premissa é da hora, né? Aliás, pretendo começar a compor com o cantor Pitbull e ter um cão da raça pitbull. Nem a favor de cotas eu sou – curto umas paradas hardcore, serião”. Incitado a contar um pouco mais sobre sua nova carreira musical, Guga pega um prato e uma faca, começa a batucar, logo se aborrece, joga o prato no chão e emenda um trecho de seu samba recém-composto:
Você sabe o que é saibro?
Você sabe o que é que é saibro?
É a areia que passo na hora de enfiar no teu rabo.
Diridiri, dirididi daddy
Guga sabe-se amado por todo o mundo, e isso hoje o constrange. “Cara, eu não quero falar de mim ou de Roland Garros, p**a mer**, não mesmo. Eu odeio Paris, cara; aquela p**ra inteira me lembra o Dazaranha”, alega o manezinho da ilha, acrescentando que odeia surfe, o Estádio da Ressacada e o gentílico “manezinho da ilha”. No que parece expor uma crise aguda de identidade, Kuerten às vezes profere frases inteiras como um paulistano de Santa Cecília, alternando a locução com uma representação gaúcha tremendamente caricata. “Bah, mêo, afudê”, ele reflete, “conheço o mundo inteiro, mas esses são os sotaques mais detestáveis”, define. “Tipo professor universitário de chapéu”, acrescenta o editor do periódico, sem resposta.
A mudança de postura de Guga começou no que seria uma sexta-feira qualquer. Em 7 de agosto de 2020, o ex-tenista trafegava pelo universo de seu smartphone quando leu a frase “#sextou com live de Caetano Veloso”. Aquele instante reforçou a célebre frase de um anfetaminado Philip K. Dick, segundo o qual “existe, para qualquer um, uma frase – uma série de palavras – com o poder de te destruir”. Em raro momento de vulnerabilidade, Gustavo Kuerten expõe lampejos de uma melancolia genuína: “não tanto pelo evento em si – ao qual sou indiferente –, mas aquela combinação de palavras simplesmente acabou comigo. Nada daquilo fazia sentido; a realidade objetiva se descolou. O planeta enquanto tal deixou de responder a tudo que eu compreendia”. Seu olhar desolado dá lugar à cabeça erguida: Guga lembra de ser o não Guga. “Ali pensei: também posso inovar”. Tal qual um Maracanã-hospital de campanha, o catarinense mais estereotipado do estado decidiu que o inóspito poderia equivaler a inovador. “Game, set, match; ou mete, no meu caso”, postula. “Porque eu transo muito”, Guga complementa, como se ninguém tivesse compreendido.
Estimulada a mudar de assunto, a equipe do RelevO pergunta se a nova personalidade de Gustavo Kuerten se mantém apaixonada pelo Avaí. Guga rebate em tom exasperado, tratando logo de queimar a mão de um dos repórteres com a ponta de um Cohiba. “Claro que ainda torço; tem time mais inútil? Era a única coisa que eu fazia certo. Errado. Sei lá”, ele conclui, espetando um sonoro, porém breve arroto no ar.
A mudança de Guga, que também passou a investir em personalidades pouco dopadas do UFC, assustou alguns amigos mais próximos, como o técnico Larri Passos. “Para mim, tudo começou com a adesão de Guga ao TikTok – ele tentou fazer uma dancinha, mas ficou esquisito naquele corpo magrão de 1.90m”, acredita o treinador dos anos dourados de Guga no circuito. O catarina se defende: “quer saber de uma coisa? Já simulei cãibra sim, c***lho. Quando conheci o Larri Passos, ele era cabeludo, ouvia reggae, cheirava mais que incenso de zona e ainda era bicurioso”, relata Gustavo Kuerten, pouco convicto. “E outra, na moral, quem se chama lar-rí?”. Da cozinha, ouve-se outro “pode crer”.
Aos críticos de sua nova fase, Guga encerra: “eu cago a forma do meu p**; se f**am”. Em seguida, com um sorriso de canto, anota o verso em uma página de Moleskine, cônscio de quanto isso é irritante. Ele detalha seu plano de criar o primeiro antiprojeto social legalizado, com o qual tiraria adolescentes do esporte para apresentá-los ao crack. Kuerten quer desconquistar o mundo, porém se preocupa: “por que as pessoas estão me seguindo mais? Me ouvindo mais? Me cogitando pra presidente? Me esqueçam, me esqueçam”.
Já de dentro do Gol Bola, a equipe observa a silhueta do ex-atleta, ainda sentado à mesa. Seus antebraços formam um triângulo: Gustavo Kuerten mantém a cabeça encostada neles, aos prantos. O soluço é nítido, embora não consigamos ver seu rosto, encoberto pelas mesmas mãos que já trouxeram tantas alegrias ao Brasil. O som do motor do Gol parece despertá-lo. Guga limpa os pômulos úmidos num guardanapo, vira uma dose de whisky japonês e levanta num solavanco. O grandalhão de dread está gritando com os garçons novamente. Nosso carro parte. Nós não o merecíamos. Nós o quebramos. O planeta finalmente tem um Guga à sua imagem e semelhança.
Não à toa, a ficha da edição informa “Revisão: Às Vezes”. Se não é sofrido (para os outros), não é RelevO.
Aqui, contamos aproximadamente três chances desperdiçadas (setpoints) de fazer piada com a expressão “quebrar [nosso] serviço”.