Deprimido por telas
Enclave #128: não sobrará tela sobre tela. João Cabral de Melo Neto.
EDITORIAL
Bom dia!
Bem-vindo(a) à Enclave #128, a newsletter híbrida presencial quatro vezes por semana.
Nossa última edição tratou de ambientação e caracterização, dois dos mais importantes elementos narrativos. Hoje, damos sequência a uma habitual choradeira a respeito da vida moderna. A edição atual, sobre a ubiquidade das telas, estende a série de incômodos ranzinzas do nosso cotidiano:
Anúncios (Enclave #122).
Apostas (Enclave #116).
Enshittification e gamificação (Enclave #124).
Tela sobre tela (Enclave #128).
Muito em breve, a edição de outubro do RelevO estará disponível em nosso site. Já estamos preparando a de novembro – e você pode contribuir! (Contexto aqui).
HIPERTEXTO
Por menos telas
O que um avião, um ônibus, um elevador, um carro, um restaurante, um bar, uma mesa de trabalho, uma mesa de jantar com criança, um bolso e uma bolsa têm em comum em 2024? Você, leitor(a) inteligente, não precisa da resposta. Essa não é uma reclamação nova, inédita; um novo insight, a fresh take. Nada aqui é.
Lembro-me do exato momento em que o excesso de telas deixou de ser “algo que acontece” para se converter em “algo que me tira do sério”, esse eterno sinal do envelhecimento. Foi num avião. Janelas fechadas (lógico…), tudo escuro. Um escuro confortável. Exceto pela centena de telas ligadas, irradiando luz. Uma ao lado da outra. Uma atrás da outra. Séries; filmes; mapas; menus, tudo com muito brilho. Aquele mal-estar representado em Wall-E.
No escuro, afinal, percebemos mais facilmente. Seja num show, seja num cinema, seja num ônibus, alguém invade a paz da sombra com sua luz não solicitada, uma vela dopamínica que não queima, mas acossa. Porque telas, afinal, secam os olhos. O que não é uma afirmação científica – a Enclave não gosta da ciência porque a ciência cria telas! –, mas empírica.
Ah, sim, as telas alavancam um dos maiores propulsores da sociedade: anúncios, talvez o motivo número um de sua ubiquidade1.
Ademais, telas carregam consigo um risco colateral diabólico, o pior pecado da modernidade: barulho. Uma TV no mudo incomoda pouca gente; uma TV que te obriga a escutar um comentarista de futebol – literalmente a profissão mais fácil de todo o planeta2 – indignado com alguma trivialidade esquecível às 13h04 de terça-feira… complica. Desanima. Machuca.
E isso nos remete àquele meme:
Claro, do ponto de vista da nossa alienação individual – agora tão fomentada quanto intermediada pelas telas do celular –, talvez nada tenha mudado3. Porém, tecnicamente, telas são (ou podem ser) piores, mais intrusivas que qualquer distração em papel. O máximo que o jornal do passageiro ao meu lado pode me atrapalhar é, quem sabe,… me sujando com tinta? O leitor xingando um colunista?
Por sua vez, a tela, além da luz infinita da qual não consigo me desvencilhar sem uma venda4, ainda corre o risco de trazer sons. Naturalmente, uma das maiores aflições da vida em sociedade é lidar com a falta de respeito ao silêncio alheio.
Aliás, existe algo de macabro quando observamos alguém contemplando uma tela no escuro. Uma gastura desconfortável como uma traça caminhando pelo chão limpo da cozinha. Repare – e não se preocupe, porque o usuário da tela estará sugado demais para perceber sua curiosidade –, é assustador. Trata-se de uma catarse como qualquer outra, porém feia. Passiva, sem elemento estético.
O que sobra de mais triste é justamente a automação do processo: é evidente que precisamos de telas porque o silêncio perturba, o escuro incomoda, o tédio mata ou o bebê não se comporta (e os pais estão cansados, provavelmente porque passaram o dia inteiro sentados olhando para telas). Then again, nenhuma conclusão inédita.
Mas esse excesso de telas derruba qualquer alma. Não estou dizendo que o problema é pior que, não sei, a ameaça da fome, de uma guerra, da poliomielite ou algo assim. Nem de longe. No entanto, os estressores contemporâneos irritam, descalibram nossa psique de uma maneira que uma ameaça real – inimigo palpável, claro, concreto – às vezes não aflige. Pode ser mais ameno, mas não deixa de ser diferente. Algumas pessoas lidam muito bem com grandes estressores, mas sofrem com o que parecem apenas amenidades ou detalhes.
Precisamos urgentemente de menos telas. No trabalho, no lazer, em viagem, durante refeições. Trabalhamos com telas, descansamos com telas, dormimos com telas. São injeções de angústia. Constatá-lo é um clichê; reclamar, uma tolice – mas o que mais resta durante uma guerra perdida?
Sent from my tela
BAÚ
Maracujá
O que o senhor diria a um jovem poeta que deseja 'construir seu objeto'?
Essas coisas são muito difíceis. Primeiro, que evite sempre a palavra abstrata e prefira a palavra concreta. Eu acho que a palavra maracujá é muito mais poética do que melancolia, porque maracujá você sabe o que é. Se eu ponho num poema maracujá, estou pondo um objeto diante de sua vista; se ponho melancolia não, porque tenho um conceito de melancolia, você tem outro. Cada pessoa chama tristeza, melancolia, depressão e essa coisa de um estado diferente. Porque usando essas palavras abstratas você não pode ser preciso. Você dilui a poesia porque usa uma palavra que tem dez sentidos, cada pessoa dá o seu sentido a essa palavra, ao passo que maracujá ninguém confunde com manga.
João Cabral de Melo Neto. Revista ISTOÉ Senhor n. 1059, 3 janeiro de 1990.
Lembrando: “para se mexer, um indivíduo muito provavelmente busca (1) conquistar alguém, (2) impedir o sono de um sem-teto ou (3) inserir um anúncio em algum lugar. Quase todo o desenvolvimento do planeta na Idade Contemporânea pode ser explicado a partir dessas três fontes de motivação. Se ou quando o ser humano morar em Marte, será para impedir mendigos de dormir de graça lá. [Ou para inserir anúncios].”
Como alguém que ao longo da vida consumiu quantidades repreensíveis de futebol (desprovido de qualquer orgulho, e, muito ao contrário, apenas o consolo de que, não fosse o futebol, seria algum passatempo pior, como plastimodelismo ou música celta), essa é uma afirmação fácil. Muitos comentaristas de futebol não são capazes sequer de enxergar o jogo, e, pior que isso, a função simplesmente dispõe de zero pele em jogo (c* na reta). Você pode falar qualquer coisa a qualquer momento e nunca ser cobrado por isso, como alguns macroeconomistas — ser um macroeconomista ruim também é uma ótima escolha para embromadores.
E, pra ser criterioso, isso já uma concessão. Claro que tudo é relativo: posso ler puro lixo no Jornal e posso usar o celular para fins estéticos ou utilitários. Mas convenhamos, com honestidade intelectual, alguém realmente acha que, *no geral*, a experiência no celular no espaço público não é mais dementalizadora que a da leitura analógica? Te convido a pegar um ônibus e testar. Até pela própria experiência melancólica do deslocamento para fins de trabalho, principalmente em função do desconforto físico, é muito mais convidativo distrair-se com qualquer Reels de fofoca do que conseguir ler Wittgenstein.
Outro problema: se eu levantar meu celular num ambiente escuro, você simplesmente não vai conseguir não olhar. É uma questão básica de contraste e de estímulo-resposta. Se eu mantiver esse celular erguido enquanto converso no WhatsApp, você não vai conseguir não ler. DIMINUAM O MALDITO BRILHO.
Voltei a São Paulo depois de 20 anos e a principal diferença é essa: pessoas em seus celulares e não na cidade.